domingo, 30 de junho de 2013


Os oito pares de sapato



Foi com certo choque que o mundo descobriu que
Emma Watson, a atriz inglesa responsável por, durante nove anos, dar vida à personagem Hermione Granger nos filmes de Harry Potter, apesar de sua fortuna de redondinhas 20 milhões de libras, tem apenas oito pares de sapato!
Passado o primeiro susto da potente revelação, o que espanta mesmo é pensar no estrondoso alarde que os veículos de comunicação mais infames fizeram acerca do fato. Em um momento histórico e político no qual não faltam pautas muito mais importantes (e interessantes), queremos acreditar que os jornalistas só insistiram em levantar o caso dos sapatos de Emma Watson porque a questão nos leva a reflexões profundas...
 Parece inconcebível a não ostentação por parte de uma jovem atriz milionária, figurinha recorrente no show biz. Causa-nos furor, ódio, escândalo, recalque. Recalque. Como pode alguém não ter um guarda-roupa mais amplo para os pés? Se Emma não estiver mentido em sua alegação, e possuir, de fato, apenas oito pares, para nós, meros mortais não ricos e não famosos, isso é indício de quê? Bem... É indício de nada!
Não interessa - ou não deveria - a nós quantos pares de sapato qualquer pessoa tem, por mais célebre que seja. O problema é que estamos acostumados a separar o consumo em "legítimo" e "ilegítimo" de acordo com a classe social da pessoa que compra. Se for estrela, é claro, espera-se que o poder aquisitivo seja carregado como um emblema, estampado com orgulho nos iates, nas mansões, nos carrões, nas roupas e (por que não?) nos sapatos. Agora, se trata de uma pessoa comum, qualquer pessoa, e se, para maior desespero do senso comum classe-mediano, essa pessoa for de renda baixa, e ainda assim conseguir juntar "verdinhas" suficientes para consumir aquilo que as "classes superiores" consomem, a questão se torna grave e começamos a nos sentir injustiçados. Mas, na verdade, em nenhum dos casos isso nos diz respeito!
Para não irmos muito longe, o exemplo está aqui, em nosso país. Instalou-se uma patrulha de controle em meio à sociedade brasileira. Nos últimos anos, com as mudanças de toda ordem que experimentamos, parece que cada cidadão tomou para si os encargos do controle da vida alheia de uma maneira potencializada, tanto do papel social quanto do político, mas também, para piorar, dos papéis que dizem respeito a funções muito mais íntimas e extremamente pessoais do alheio. O consumo é uma delas. Associada ao preconceito em seu estado mais cru e bruto, a ação dos patrulheiros "classe média sofre" vem sempre acompanhada do discurso-pérola: "Agora todo mundo (pobre) tem celular, computador, facebook, instagram...".
Cabe dizer: não estamos autorizados a controlar o consumo dos outros. Não é tarefa nossa. Não é tarefa, absolutamente. E esse encargo assimilado voluntariamente se torna questão de doença moral quando queremos, através de nossas ações, manter as diferenças entre as classes econômicas e os estratos sociais, partindo do argumento de que a exclusividade não deve ser tirada dos que têm maior poder aquisitivo, porque isso invalida o que os tornava "especiais".
Temos um medo absurdo de que o nosso comprar seja arrancado de nós... Mas por quê? Tudo isso é balela, coisa miúda. Por que manter a segregação, manifesta, sobretudo, em termos de consumo, se ninguém tem motivos racionais e reais para se sentir mais especial que outros, ou para isolar a sociedade em blocos de merecimento capitalista?
Sentimo-nos agredidos se a massa desses "outros" e "alheios" e "inferiores" passa a ter o que antes era só nosso. No Brasil, como se vê, o consumo é questão de cidadania. E só é cidadão quem tem dinheiro. Aquilo que, em melhores palavras, Milton Santos disse: "No Brasil, não existe cidadania. Os pobres não têm direito. E os ricos, eles não querem direitos, querem privilégios".

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