Ao longo deste último semestre de 2012, tenho me deliciado especialmente com uma das disciplinas que escolhi fazer em meu curso. Trata-se de "Fundamentos da Literatura Comparada" - que, apesar do nome pomposo e um tanto amedrontador, vem rendendo-me maravilhosos debates e incomodações internas.
Estava eu lá, acompanhando o destrinchar de um texto sobre a pós-modernidade e a confusão de ideias ao redor desse conceito, quando minha professora tocou no assunto que há algum tempo eu pesava em minha cabeça: As chagas do "politicamente correto".
O assunto emergiu, durante a discussão, dentro do contexto de estudos culturalistas empenhados mormente pelas universidades norte-americanas sobre a literatura. Eles passaram a lançar os estudos literários para muito além da análise estética, de modo que a literatura acabou estrangulada por essa "necessidade" de encaixá-la na fôrma das questões sociais tão em voga, tais como identidade, sexualidade, gênero, raça, etc.
Esses enfoques tendem à ação condenatória, sufocam a liberdade e audácia literárias de dizer o que é preciso da forma como for. Os críticos começam a supervalorizar fatores alheios ao texto, impô-los sobre as obras, e, por fim, marginalizam-nas e até censuram, caso as julguem sem "função social", antiéticas, amorais.
Tais estudiosos parecem esquecidos de que uma das funções da ficção é dizer a verdade, verdade normalmente não dita pelo corriqueiro. Porém, se até à literatura despojam de suas questões difíceis, polêmicas, cruéis, então deixará de ser ficção e se tornará mera mentira, mostrando unicamente o que for agradável, passivo, ajustado - e bem sabemos que a vida não é essa balinha de menta...
Começaremos então a dizer que a obra de Monteiro Lobato é racista e, portanto, nociva, não deve ser lida. Depois afirmaremos que "Atirei o pau no gato" (isto mesmo, a velha cantiga de roda com a qual todos nós deliramos na infância) estimula comportamentos violentos e determina a formação de futuros psicopatas; daí mudaremos a letra a fim de que não soe tão escandalizante e, assim, aniquilaremos a tradição oral para que a musiquinha se adeque a este novo "totalitarismo ético".
A verdade é que a maldade está muito mais no indicador daquele que censura do que naquilo que é censurado. Os patrulheiros da seita politicamente correta estão por toda parte, à espera de que alguém levante alguma "questão indelicada" ou outro assunto "indiscutível", para condenar pobres almas curiosas ao Hades da sociedade, já que elas feriram os princípios da boa convivência humana. Esses arautos amputam tudo aquilo que possa levantar dúvidas e questões, calam o humor, a arte, a audácia, o despudor, pelo medo de que o impróprio se diga. Vão criando regras tolas, cerceando os debates, evitando até mesmo o pensar naquilo que é feio e complicado.
E quando chegar o momento em que as questões difíceis forem inadiáveis? E quando essas mesmas questões começarem a nos tragar vivos? Vamos simplesmente escondê-las sob o tapete, por respeito a um relativismo burro, já que, por exemplo, "falar de sexo é muito complicado" e "religião não se discute"? Vamos abolir de nosso léxico a palavra "preto" para ninguém julgar que estejamos nos reportando preconceituosamente a um "afrodescendente"? Vamos temer de tal modo a patrulha da ética, ao ponto de já não conversarmos sobre nada? Sentar-se-ão as famílias à mesa, e hão de se olhar durante todo o jantar em silêncio, porque o pesadelo da vigilância correcional ronda até a intimidade do lar...?
Essas regras constroem uma corrente cada vez mais apertada e sufocante ao nosso redor. Corremos o risco grave de condenar nossa linda e harmoniosa sociedade a um retardamento mental irreversível, porque nos falta a coragem de esfregar um pouco de álcool nas nossas feridas. Não percebemos completamente que, apesar de doloroso, é vital. E as chagas estão aí, apodrecendo sem tratamento, semiocultas sob as camadas de pele seca e falso refinamento social.
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