Macapá irá completar 255 anos, a melhor maneira para pensar a cidade, é caminhar pela orla, muitos realizam isso todos os dias, praticando atividades esportivas, porém, a caminhada está relacionada a forma de olhar, o nosso lugar, de perceber a identidade e formação da cidade. Outro dia, realizei esta caminhada na orla da cidade de Macapá. O ponto de partida se deu na área de estacionamento nas imediações da Fortaleza, ali onde decorreu o contexto de formação do núcleo da cidade, onde existe teoricamente a abrangência do raio de proteção da Fortaleza, onde está o cenário do Mercado Central, e as inúmeras "edificações imaginárias" que constaram da paisagem no entorno desta área ao longo de mais de dois séculos e meio.
Sobre a Fortaleza de São José, apesar do tombamento realizado em décadas passadas, várias ações foram feitas neste período, de alguma forma atingiram a delimitação da área de proteção; a revitalização realizada na área do entorno do Forte, teve benefícios e outros problemas, nem sempre as alternativas colocadas em prática foram discutidas com a sociedade, após a última intervenção, ficou claro que o projeto idealizado isolou parte da muralha do lado esquerdo. É preciso estar atento para isso, à edificação esteve durante décadas no controle dos militares, contribuiu para isolar a população.
Sobre o olhar da Beira-rio e do Canal da Mendonça Junior, estão relações históricas e distintas da cidade com os aspectos culturais e simbólicos. O canal foi abandonado, ficou a indignação, até onde vão os limites éticos de nossos governantes. No caso da Beira-rio, ficou desconfigurada com a proposta de um padrão único para os bares e restaurantes, a utilização de uma cobertura única criou uma parede de isolamento entre a cidade e o rio. Na década de 1990, foi urbanizada a área no entorno da Fortaleza como um grande espaço público. Esta área era parte do uso de integração com a orla do rio Amazonas, sendo alterado posteriormente.
Caminhando em direção ao cais do Perpetuo Socorro, o estágio da orla e imediações vem sendo maltratada há tempos pelo poder público e pela própria população, lixo acumulado, obras inacabadas, buracos, imensas crateras e erosão em algumas partes, pouca sinalização, degradação do passeio público. Do lado do rio, um forte processo de assoreamento com muito lixo, parte deste lixo é provocado pelas próprias embarcações que atracam para vender os produtos.
A importância da orla e a sua integração com a cidade é fundamental, no caso do Perpetuo Socorro, houve uma ruptura na continuidade da orla, seria preciso pensar naquele local uma intervenção com a participação da comunidade no sentido de dar continuidade a faixa litorânea, valorizando o rio Amazonas. Os planos diretores anteriores destacaram propostas para a área da orla da cidade, porém, governos anteriores sempre insistiram em investir na frente da cidade em atividades esportivas, que são importantes, mas, não é a única alternativa, o local é privilegiado para integrar a estrutura urbana da cidade.
No final da Avenida FAB, parei por alguns minutos para destacar vários pontos do nosso trajeto: a construção do edifício da ACIA com um gabarito muito elevado, distoa da paisagem de um suposto centro histórico. Avenida FAB, a primeira pista de um aeroporto da cidade de Macapá, é um divisor de águas entre as zonas Norte e Sul, nesta via, foram concentrados os principais investimentos do período do Território Federal do Amapá: Colégio Barão do Rio Branco; Escola Integrada (antigo GM); Rádio Difusora; Praça do Barão do Rio Branco; Casa do Governador, Correios, etc. Sobre a Casa do Governador, pouco resta do projeto original. A Vila de casas construídas entre a Avenida Coriolano Jucá com São José não existem mais, o que mais se destaca é o prédio da Loja Amazonas Importados.
Durante o trajeto desta caminhada verifica-se que o público ficava curioso para saber do que se tratava, no Amapá, vive-se a síndrome da desconfiança, quando algum grupo com mais de vinte pessoas se reúne logo chama atenção, pouco se exerce a caminhada pela cidade com este propósito, de entender e compreender a lógica do lugar onde vivemos. É evidente que em Macapá existem muitas dificuldades para realizar este feito, mas precisamos trabalhar com mais frequência os nossos vínculos com o passado.
A última etapa era o Trapiche Eliezer Levi, o Trapiche teve um papel importante, era o local de embarque e desembarque para os passageiros que vinham das ilhas, e de Belém do Pará, o que foi mudado para a cidade de Santana, até então, a orla era mais oportunizada, inclusive daqueles que avistavam a cidade de longe. Na década de 1990, o Trapiche foi reformado, de uma estrutura de madeira passou para concreto, todavia, alterou-se o projeto original, inclusive a distância total, passou a ter outra função, muito mais de contemplação, há algo neste lugar que não combina e nem funciona ( aquele bondinho), isso reduziu inclusive a área de acesso.
As reflexões finais sobre este trajeto dão conta do fracionamento e do isolamento em que a cidade está em relação ao seu principal patrimônio, o rio Amazonas, é preciso maior participação da população como agente de transformação, e não de destruição, muito do que foi observado foi imensamente alterado, transformado, nem sempre para melhor. A imagem de um lugar começa pela frente da cidade, a nossa orla não está somente maltratada, está fragmentada de uma visão sistêmica.
Os fenômenos sociais, culturais, ambientais e políticos que foram alterando o espaço urbano e a arquitetura da cidade de Macapá nestes 255 anos deixaram marcas simbólicas, vínculos reduzidos do nosso patrimônio, quase que imaterial na sua totalidade. Para os gestores públicos, fica a convicção de que tem muito trabalho pela frente, mas é preciso ousar, ter a coragem de resgatar a imaterialidade da maior parte de nosso patrimônio, seja urbano ou arquitetônico. O resultado final desta caminhada possibilita também, aguçar o olhar, e a percepção sobre o que é real e o imaterial na cidade de Macapá. Será preciso mais quantos anos para legitimar a nossa memória e identidade? Até onde irá o limite do futuro? Na completa eliminação do passado edificado. Viva Macapá!
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