O problema é maior que o Bolsonaro
William
Douglas é Juiz Federal/RJ, professor universitário, autor. Considerado o
maior especialista em concursos pela Revista Veja, Você S/A e Valor
Econômico. Em 2012, figurou em 1º lugar nas principais listas de livros
mais vendidos do país.
Este
país padece de um mal muito sério. As pessoas aproveitam situações para
impor suas ideias ou iniciar campanhas sem uma análise razoável
anterior. Ou falta serenidade, ou orientação, ou boa-fé. Serenidade,
para analisar os fatos. Orientação, para saber que mesmo o adversário,
aquele de quem discordamos em tudo, é titular de direitos tão legítimos e
amplos quanto aqueles que pensam igual pensamos. Boa-fé, para não nos
livrarmos de quem não gostamos utilizando minigolpes contra os
eleitores.
Falarei de dois passos importantes para a democracia.
Primeiro, que a voz do eleitor não seja ignorada. Segundo, que ao fazer
julgamentos (ou seja, aplicar justiça), os erros, ofensas e crimes sejam
julgados de forma igual tanto para quem é do nosso partido, quanto do
partido adversário. Esse é o ideal a ser perseguido. Por exemplo, do
jeito que vão as coisas, alguém, ao ler este artigo, ao invés de
refletir sobre seu conteúdo talvez vá dizer que estou defendendo o
Bolsonaro, ou até mesmo o estupro. Como professor, contudo, mesmo com o
risco de ser mal interpretado, tenho o dever de apontar dois problemas
reais: primeiro, dois pesos e duas medidas. Segundo, uma campanha que se
aproveita de meio fato para criar um grande golpe.
Estamos
acompanhando uma campanha dizendo que frases como a do Bolsonaro
estimulam o estupro. Não que eu concorde com o estilo do Deputado, ou
com sua infeliz frase, mas convenhamos: nenhum estuprador está
consultando as declarações de um parlamentar para decidir se delinque ou
não. Analisar apenas o que Bolsonaro falou é meio fato, e justiça só se
faz olhando o fato inteiro.
As informações às quais tive acesso
dão conta que o Deputado Jair Bolsonaro disse o seguinte: “Há poucos
dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia
estuprar você porque você não merece”. Eu particularmente acho
deplorável um cidadão, ainda mais um parlamentar, dizer isso para uma
mulher. No entanto, daí a querer sua cassação existe um grande espaço, e
digo o motivo. Se a Deputada chamou o Deputado de “estuprador”, há que
se admitir que a retorsão à ofensa seja igualmente deselegante. Estamos
diante de uma ironia, grosseira sim, mas não de uma apologia ao estupro.
Indo além, vi no Facebook um vídeo que apresenta “provas” de que o Dep.
Bolsonaro “agrediu” a Deputada. Vendo o vídeo, fica evidente que a
Deputada foi em direção a ele e o mesmo tão somente impediu a
aproximação física da Deputada. Deploro a grosseria contra qualquer
pessoa, em especial uma mulher, mas daí a dizer que houve uma agressão
física existe um grande hiato.
Realmente preferia que o Deputado
não retrucasse da forma como fez, mas se foi objeto de agressões
verbais, não podemos julgar apenas as que proferiu e ignorar as que
recebeu anteriormente. Ao ser atacado verbalmente, poderia processar a
Deputada, mas parece que sabe que a maioria fala o que quer sem tanta
censura. Outro caminho, previsto na lei, é a retorsão da ofensa. Talvez
um juiz, como eu, pensasse em processos; um militar tende a atirar de
volta. Aliás, no amor e na guerra fala-se que “chumbo trocado não dói”.
Ao menos, não deveria. No Parlamento, idem. E se quase meio
milhão de brasileiros quiseram alguém com este estilo atuando no
Congresso, podemos até criticar o gosto, mas temos que aprender a lidar
com isso deferindo direitos iguais para todos. Todos os parlamentares, e
todos os eleitores, e jornalistas, qualquer que seja o partido.
Citarei
mais uma evidência de que estamos no país das duas medidas. Um
Professor de Filosofia da UFRJ, Paulo Ghiraldelli, disse para outra
mulher, Rachel Sheherazade, o seguinte: “Votos para 2014: que a Rachel Sherazedo (sic) abrace, após ser estuprada, um tamanduá”.
Isso não foi uma ironia, foi bem mais e, mesmo assim, o repúdio foi
ínfimo em comparação ao que está sendo dirigido ao Deputado. Existem
estupros diferentes? Certamente que não. Isso revela um drama atual do
Brasil: dependendo de quem fala, e de quem é a vítima, as reações são
diferentes. Anoto que ao ler as demais postagens do professor, não
acreditei na (fraquíssima) versão de que foi hackeado. Foi feita
apologia direta de estupro direcionada a uma pessoa e não vimos a mesma
repercussão, nem a enxurrada de representações que vemos agora. Então,
fazer votos de que alguém seja estuprada, se a vítima for essa ou
aquela, é menos grave?
Não podemos ter um país onde as coisas
valem não pelo seu conteúdo, mas pela posição política de quem as
realiza. Alguém não tem o direito de desrespeitar outra pessoa por ser
ela de direita ou de esquerda.
O outro problema são as tentativas de golpes ou minigolpes que infestam nosso cotidiano. Neste passo, começo pelas propostas de impeachment
e de intervenção militar, claros desrespeitos ao eleitor. Stédile
prometeu que haveria guerra se Dilma não ganhasse, e parece que existem
Stédiles também do outro lado. Ora, qualquer medida fora dos cânones
constitucionais é inaceitável, seja do Stédile, seja de qualquer outro.
Existem regras, vamos segui-las.
Entre as regras está o direito
de parlamentares falarem praticamente tudo o que quiserem. Há limites,
mas não podem ser pequenos, nem fajutos, nem que valham só para o outro
lado. O Deputado Bolsonaro representa parcela considerável dos
eleitores, fala em nome de quem o elegeu. E não foram poucas pessoas.
Daí, não deveria ter o risco de ser cassado senão por um motivo direto,
claro, e não de uma interpretação (por sinal equivocada) onde ironia e
grosseria em retorno à ofensa sofrida são convenientemente chamadas de
apologia ao crime. Querer se livrar de alguém que ganhou as eleições,
Dilma, sem seguir as regras é golpe. Querer se livrar de alguém que
incomoda por suas opiniões e pelo modo de expressá-las, Bolsonaro, é
minigolpe.
Enquanto eleitor, sinto cheiro de virada de mesa: (1) quem perdeu a eleição não quer seguir as regras (elas existem, até para o impeachment);
(2) alguns partidos, aproveitando-se de sua maioria na Casa, querem
tirar um elemento incômodo. Ambos os desejos, a despeito dos eleitores
que os colocaram onde estão. No caso de Dilma, é atropelar as regras do
jogo que todos devem seguir. No caso de Bolsonaro, é querer subtrair
diversidade e representatividade de uma Casa que tem padecido justamente
pela falta de oposição e de pessoas com opiniões que não estão à venda.
Podem ser grosseiras, mas são opiniões firmes em um lugar que padece de
algumas ilhas de pusilanimidade. O Deputado em risco de cassação por
suas opiniões é alguém cujas opiniões e postura são claramente
conhecidas por quem votou nele. Querer tirar um parlamentar de oposição e
legitimamente eleito, e tão bem votado, é um desrespeito aos eleitores.
Eleitores que o escolheram apesar de todos os seus defeitos, já
notórios bem antes das últimas eleições. Quase meio milhão de cariocas
quiseram colocar em Brasília um desbocado autêntico. Ele pode até ter
posturas polêmicas, mas ninguém ouviu falar que leva dinheiro para
votar, ou que tem parte no Petrolão. Respeitemos o eleitor.
Aliás,
isso me lembra o grande erro da Comissão da Verdade, cujo relatório
acabou de ser entregue. Ao contrário do paradigma sul-africano, a nossa
comissão não analisou os crimes cometidos de lado a lado, apenas os dos
militares. Mas e os crimes dos terroristas? Estes podem ser esquecidos? A
Comissão sul-africana era da “verdade e reconciliação”. E tratou de
todos os lados do conflito. A nossa, ao tratar apenas dos militares, ao
menos tirou o nome “reconciliação”, desde já fazendo a devida confissão
de sua parcialidade. Com parcialidade não há a possibilidade de
reconciliação. Dois pesos, duas medidas.
As regras legais, de
cortesia, de ironia, de retorsão às ofensas e de respeito às autoridades
devem valer igualmente para todos, sem distinção de raça, cor,
orientação religiosa, sexual ou política. A reação das autoridades e da
imprensa também deveria ser a mesma qualquer que fosse a vítima. Como
disse um Senador já falecido: ética é ser a favor do certo mesmo quando
ele nos prejudica e contra o errado mesmo quando ele nos favorece.
Enfim,
o problema maior deste país não é o Bolsonaro, como muita gente quer
fazer crer. Cito dois problemas maiores. Um, não querem respeitar a
democracia nem as regras do jogo. Parece que a opinião dos eleitores
vale menos quando não interessa a quem tem algum poder. O segundo, é que
os mesmos atos ou fatos são interpretados de forma diametralmente
oposta a depender da simpatia ou antipatia em relação a quem os pratica.
No fundo, é um problema único: dois pesos, duas medidas. Seja o do
voto, seja o da opinião. Muita gente acha que seu voto ou sua opinião
valem mais do que a do outro. A do outro pode ser até crime!
Ainda
no campo dos pesos e das medidas, estou cansado de ver pobres não
poderem devolver um quilo de arroz, ou um litro de leite, e irem para o
presídio passar longo tempo. Espero que isso não seja permitido a quem
tem iates e helicópteros. Como proponho na minha campanha “Cansei, quero
um país diferente”, ou damos uma anistia geral para todos os ladrões
que confessarem seus crimes, ou não podemos aceitar essa gentileza só
para os ricos. Proponho três meses de prazo para todos confessarem seus
delitos e devolverem a pilhagem. Sejam pobres, sejam ricos; seja o
empreiteiro “coitadinho” que não quer que o Brasil pare (prefiro que
pare, para que saiam), seja o “guardinha” da esquina. Quem sabe os
pequenos corruptos desse país não queiram fazer sua autodelação
premiada? Por que só para os ricos?
Enfim, não aceito que
empreiteiros possam sair de fininho se os corruptos e os ladrões de
galinha não tiverem a mesma chance. Não aceito quererem tirar a Dilma
sem seguirem direitinho as regras do jogo. Não aceito tirarem o
desbocado do Deputado que não vende seus votos. Talvez eu venha a ser
vítima da cultura que critico: aquela onde não julgam mais as falas e os
fatos, mas, apenas a pessoa que fala ou os pratica. Como cidadão e
professor, friso o problema real do nosso país: dois pesos, duas
medidas. Não vou discutir neste momento qual deva ser o peso, ou a
medida, mas friso que quando enfim os escolhermos, devem ser os mesmos
para todos: para os da direita e para os da esquerda, para os pobres e
para os ricos.
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