Uma viagem telúrica por Macapá
Um menino, magro, descalço e sem camisa. No corpo esquálido
apenas um short roto encobria sua genitália. Caminhava taciturno pelos caminhos
da Favela. Um caminhar sem rumo, sem prumo e incerto. Ao longe e em certa época
troar de canhões vindas das bandas do rio. Em outro tempo um tamborim frenético
animava os rebolados das morenas. O surdo do Pelé fazia a marcação do ritmo da
verde e rosa. Vagalume equilibrava a garrafa na cabeça enquanto sambava
garantido o ritmo do samba.
Pelas ruas de piçarra aqui acolá um igarapé a entrecortava.
No pequeno espaço plano uma bola rola de pé em pé. Atrás dela ruidosos meninos
corriam em busca do gol. Talvez sem se perceber que gol era a vida, o futuro.
Tudo era perto, todo mundo se conhecia, todo mundo se
respeitava e a se ajudava. Seu Bio, Mucura, Luciano, D. Sicinanda, Minervina,
seu Vavá e o Bernardo que fazia o pão. A cidade era pequena, e nos dava a falsa
sensação de bem organizada. Qual nada! Quem lhe administrava não lembrava que
aquela menina ia se transformar numa senhora.
Cresceu a menina morena que lavava os pés no Amazonas sentada
no arrimo do Quebra Mar. Com os cabelos esvoaçantes fitava o horizonte e uma
densa nuvem negra se formava anunciando temporal. Tudo faz sentido no lugar da chuva, Amapá, da tempestade que se
apresentava naquele horizonte insípido, inodoro, quem tempera o sabor deste
fausto chão?
O garoto correu para o tempo que lhe tragou de um sorvo a
juventude. Deu-lhe pela química humana a lentidão. Roubou-lhe a velocidade,
tirou sem dor o sorriso inocente para lhe entregar uma carranca sorumbática.
Tirou-lhe a inocência e deu-lhe a malícia e, por fim, a utopia para lhe mostrar
a cara cruel da vida, assim como ela o é. Nua e crua. Carcará sanguinolento,
que pega, mata e come as esperanças dos garotos da estancia das bacabas.
Macapaba do Arraial do largo dos inocentes onde tudo começou.
Ah! Mais como é veloz o tempo, pensou o homem. Ontem, ontem
Francisco Xavier de Mendonça Furtado vinha em destacamento militar fundar
Macapá. Proteger porções daqueles que se
apossaram do que já tinha donos. Tucujú subtraídos.
Quando menino, os olhos remelentos e, a fome insaciável, o
fazia correr pelos cajueiros e mangueiras públicas e sem domínios. O pomar das
ruas saciava a fome que impertinente se anunciava em estrondosos roncos vindos
das entranhas, avisando que criança come. A brincadeira... Deus dava ao léo.
Criança brinca, afinal, pois é tempo de ser irresponsável e viver sem relógio e
sem compromisso de hora marcada. Mas criança estuda e envelhece. Isso os
governantes esqueceram.
Bem! Hoje mais um ano se vai. 255 para ser cronológico.
Subjetivo é dizer se é muito ou pouco para uma sociedade amadurecer. Algumas,
no centro do Brasil, amadureceram com menos idade. Aqui, no Quebrar Mar a
menina esqueceu-se de levantar. Gostou do vento que enxuga o rosto molhados com
as rajadas de água que se atiravam frenéticas no muro e se esparramavam na
calçada. Ela se virava para proteger seus belos cabelos negros, longos que
caiam nas cadeiras. Abriu os olhos e viu que a cidade espichou. Andou e sentiu
um peso em seus ombros. As ruas mal asfaltadas e cheias de buraco. Viu pessoas
gemendo de dor por falta de saúde e meninos como ela, caminhavam cabisbaixos e
tristes algemadas e sendo conduzidas para confinamento. Meninas morenas de
cabelos longos não sorriam, apenas piscavam e faziam caras e bocas e se
insinuavam aos homens. Trajavam minissaias e sapatos altos. Vendiam a alma, o
corpo, e, o futuro.
O menino não conseguiu mais chutar a bola, pois não tinha
mais bola de borracha. Em seu lugar foi colocada uma "muca" de
maconha para ele fumar e traficar.
O trem não faz piuí puí, mas by by riqueza de vocês. Nós
todos na estação a acenar inertes e sem atitudes. Apenas testemunhas do saque
autorizado por eles.
As sirenes intermitentes, com luzes piscando e homens de
preto, encapuçados e com armas nas mãos prendem homens que desviam, saqueiam o
que era da bola de borracha, do caderno e do lápis. Então fica claro entender
as filas em busca de saúde e os gemidos de vergonha e dor daquelas vítimas da
democracia representativa mal representada por pessoas descompromissadas.
Estamos presos na margem esquerda do rio mar. Presos pelo
tempo que passou e pouco deixou. Somos prisioneiros do atraso. Passageiros da
agonia que caminham entre a descrença e a crença de que um dia vamos comer 50
metros de bolo na Confraria Tucujú com razões verdadeiras e altaneiras para
abraçar a Zaide, o Munhoz, Nilson Montoril, a Telma Duarte, o Pereira, o Gilberto Pinheiro, a Zoraide e que tais
para gritar a plenos pulmões. Que somos felizes e sabíamos. Deus foi generoso,
apesar da crueldade daqueles que se arvoraram a administrá-la com um olhar
introspecto.
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