sábado, 28 de março de 2015

ANTENADOS





LIÇÕES DE TOLERÂNCIA

Aprendemos a muito falar em tolerância, ser tolerante, a lidar pacientemente com o outro, respeitar suas escolhas e seu espaço, mas, embora o discurso seja bonito, grandiloquente, repetido por boa parte de nós, é uma pena que nós mesmos estamos tão pouco propensos a aplicá-lo em nossas vidas. 

Deixamos a discussão para as coisas grandes, muito graves, e ignoramos que os exercícios de tolerância se dão no dia a dia, na rotina, dia após dia.

Na verdade esse é um mal dos nossos tempos, essa reprodução banal de discursos muito polidos, ou mesmo inflamados, sempre em prol de uma nobreza das relações interpessoais, mas que se torna problemático exatamente por não ser aplicado para fora da dicção de palanque, no trato humano mesmo do cotidiano.

Exemplos da intolerância nossa de cada dia não faltam, mesmo quando hoje tanto se fala de respeito. Aqui em Fortaleza, por exemplo. Começou a época da chuva, chuva como há alguns anos não vinha, e, nos dias em que a água resolve cair, ela não para. Vai e volta o dia inteiro, numa quantidade absoluta para encher a cidade. 

E embora a população se alegre muito com a perspectiva de um tanto de água cair também lá no sertão, Fortaleza vira caos, porque a infraestrutura de escoamento da água é um tanto precária, e as ruas colaboram para as enchentes, e, nesse contexto, inevitavelmente, os ânimos de todos que têm de ir para escolas e trabalhos nos ônibus ou a pé ou de bicicleta debaixo de tanta água acabam mesmo exaltados.
Nessas horas, cadê a tolerância, o pensar também no outro? Os carros não se preocupam em evitar as poças, e assim os pedestres viram banhistas. As pessoas nas paradas de ônibus são algumas das que mais sofrem. Além dos banhos, não há espaço para todos debaixo da cobertura de concreto das paradas, e até os guarda-chuvas salvadores se tornam empecilhos cruéis, com todo mundo ali espremido. Nesse momento, todos se odeiam.

E foi dentro do ônibus que recentemente testemunhei uma das mais chatas demonstrações de intolerância. Era manhã cedo, o ônibus lotado, chovia muito e havia uma fila imensa de passageiros para descer no ponto em que o motorista acabara de parar. 

Uma mulher então se deteve uns momentos na porta do ônibus para abrir o guarda-chuva e não se molhar ao descer. Um homem na fila, atrás dela, começou a bufar. Logo vieram dele os insultos, por conta da demora. E ela, nervosa, acabou demorando ainda mais para conseguir abrir o treco de uma vez. E mais bufava o homem.

Veja, porém, que estávamos todos nós ali na mesma situação. Todos pintos molhados, todos atrasados para o trabalho, todos irritados, mas a culpa não era da mulher que se demorou ao descer, e não havia porque se irritar com os cinco segundos que ela tomou para sacar seu guarda-chuva. E o homem exasperado na fila abriu também o dele ao sair. Quer dizer, uns podem, outros não? 

Somos pacientes quando os demorados somos nós. Somos compreensivos quando quem se atrasa é a gente. De modo geral, a nossa tolerância é elástica, e nessa elasticidade mora o perigo de concedermos perdão a uns e condenação a outros, até em pequenos conflitos do dia, quando, na verdade, não cabe a nós, de imediato, condenar ninguém, nem escolher em que momentos ser ou não tolerante. Se se fala em tolerância, é indispensável um mínimo de constância, mansidão e maturidade. 


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