Senado debate aumento de rigor contra cigarro
Dante Accioly, da Agência
Senado
Colaborou: Nelson Oliveira
Colaborou: Nelson Oliveira
O cigarro faz do Brasil refém de uma estatística perversa. De cada cinco
jovens que dão a primeira tragada antes dos 18 anos, três podem ser tornar
dependentes e permanecer fumando ao longo da vida adulta. O impacto para a
saúde é desastroso: o uso continuado do tabaco está relacionado a pelo menos 50
enfermidades graves, como cânceres e doenças respiratórias e cardiovasculares.
A droga mata mais de 156 mil pessoas por ano no Brasil 01— uma média de 428
óbitos por dia.
A criação de um grupo de trabalho no Ministério da Justiça reacendeu o
debate sobre as sequelas do fumo e as políticas mais adequadas para diminuir o
seu consumo. Assinada em março pelo ministro Sergio Moro, a Portaria 263/2019,
atribui ao grupo a tarefa de rever a tributação sobre os cigarros baseando-se
na hipótese de que a carga de impostos estimula o contrabando de produtos de
baixa qualidade, com danos para a arrecadação e para a saúde dos brasileiros.
As estimativas da venda de marcas clandestinas variam de 30%, segundo informe
de uma das empresas líder do setor, a 48% do total de maços vendidos no Brasil,
de acordo com o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade.
O grupo de trabalho, no qual representantes do Ministério da Saúde
atuarão como convidados, vai se debruçar sobre uma proposta controversa:
reduzir a carga de impostos — e consequentemente o preço — do cigarro nacional
para torná-lo economicamente mais atraente. Os especialistas têm 90 dias para
apresentar suas sugestões.
A portaria 264, baixada no mesmo dia da primeira, cria um outro grupo de
trabalho destinado a estruturar a implantação do Centro Integrado de Operações
de Fronteira no município de Foz do Iguaçu (PR), cidade que integra a tríplice
fronteira com o Paraguai e a Argentina, corredor usual do cigarro
contrabandeado.
A reação à ideia de Moro não foi positiva no Senado. Em meio aos
trabalhos de votação do dia 26 de março, a possível redução de impostos para os
cigarros recebeu duras críticas dos senadores José Serra (PSDB-SP), Simone
Tebet (MDB-MS), Rogério Carvalho (PT-SE), Zenaide Maia (Pros-RN), Marcelo
Castro (MDB-PI), Eliziane Gama (PPS-MA) e Humberto Costa (PT-PE).
"Reduzir impostos de cigarro é reduzir a vida do povo brasileiro.
Nós não temos o direito de fazer isso. Nós não podemos permitir isso. Isso é
retroceder e esse retrocesso custa muito caro porque custa vidas",
protestou Zenaide.
Governo estuda diminuir tributos
sobre o cigarro para combater contrabando (foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)
Presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, o advogado
Edson Vismona defende a redução dos tributos, que a indústria situa hoje na faixa
de 80%, na soma do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Vismona destaca que, entre as dez marcas de cigarros mais vendidas no
Brasil, quatro são paraguaias. Duas delas ocupam as primeiras posições no
mercado local. Vismona estima em R$ 100 bilhões o prejuízo da indústria e em R$
46 bilhões as perdas com a evasão fiscal:
— Paga-se 18% de impostos no Paraguai. Aqui no Brasil, isso vai de 70% a
90%. A discrepância está aí. Quem consome vai atrás de preço. A média do
produto brasileiro é de R$ 7,46. O ilegal, R$ 3,31. O consumidor vai comprar
qual? É óbvio. Esse é o fator determinante do crescimento do mercado ilícito e
do consumo de cigarros no Brasil.
O argumento baseado nos efeitos nocivos do rigor tributário integra há
muitos anos a pauta de queixas da indústria do tabaco — lado a lado com o do
suposto equívoco quanto ao preço mínimo por maço (R$ 5,00). Ao longo das duas
últimas décadas, entretanto, o hábito de fumar vem regredindo de maneira
consistente. Entre 2003 e 2017, o consumo per capta caiu 57,8% e o número de
fumantes, 35,6%, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca).
Em que intensidade — e por que meios — essas taxas poderiam melhorar? A
tendência é que senadores e deputados sejam pressionados a aproximar o país
ainda mais das recomendações da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco,
firmada sob a coordenação da Organização Mundial de Saúde (OMS).
O Senado analisa pelo menos oito projetos de lei que pretendem
restringir o consumo, a venda e a publicidade dos produtos derivados do fumo.
Na Câmara, são mais de 500 proposições. Uma preocupação recorrente dos
parlamentares é limitar o acesso de jovens ao cigarro — seja ele ilegal ou não.
As medidas mais rigorosas estão reunidas no PLS 769/2015, do senador
José Serra. O texto ataca o problema em quatro frentes distintas: proíbe
qualquer tipo de exposição ou promoção de produtos fumígenos; prevê o uso de
embalagens padronizadas para todas as marcas vendidas no Brasil; barra o
comércio e a importação de cigarros mentolados ou aromatizados; e pune o
motorista que fumar ou permitir o fumo em veículo que transporte menor de
18 anos.
O projeto foi aprovado nas comissões de Assuntos Sociais (CAS) e de
Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor
(CTFC). No ano passado, a CTFC realizou duas audiências públicas sobre o PLS
769/2015, com a participação de especialistas a favor e contra a matéria.
A odontóloga Alessandra Trindade Machado, representante do Instituto
Nacional do Câncer, defendeu a aprovação do texto. Lembrou que os custos
associados a despesas médicas e perda de produtividade provocadas pelo tabagismo
no Brasil alcançam R$ 56,9 bilhões por ano. O valor que o governo arrecada com
tributos sobre a venda de cigarros – R$ 13 bilhões anuais — representa menos de
23% desse total.
Alessandra apontou a propaganda e a capilaridade dos pontos de venda
como fatores que estimulam o consumo do cigarro. Mas criticou especialmente o
uso de embalagens coloridas e substâncias químicas para alterar o sabor do
produto como as estratégias da indústria para fidelizar o público jovem.
— Substâncias para conferir sabor adocicado reduzem a irritação na
garganta que o cigarro causa. Por que um produto que mata dois em cada três
consumidores é acondicionado em embalagens coloridas, atrativas e com sabor
adocicado? — questionou a odontóloga.
A psicóloga Monica Andreis, diretora da Aliança de Controle do Tabagismo
Promoção da Saúde, também defendeu o PLS 769/2015, destacando que o projeto
previne “a iniciação” ao tabagismo.
— Cerca de 90% dos fumantes começam na adolescência. Dois terços se
tornam usuários regulares antes dos 19 anos. Portanto, os adolescentes são
aqueles que se tornam dependentes e vão fumar pelos próximos 15 a 20 anos. Por
isso, o tabagismo é reconhecido como uma doença pediátrica, que requer medidas
preventivas e legislativas. Tabaco não é um produto qualquer, é sim uma droga —
afirma.
Senado realizou audiências públicas
para debater a proposta de aumento das restrições à venda de cigarros
A maior resistência ao PLS 769/2015 vem do setor tabagista, que
movimenta R$ 2,5 trilhões por ano ao redor do mundo. O agrônomo Delcio Sandi é
conselheiro da Associação Brasileira da Indústria do Fumo. Ele argumenta que o
Brasil já adota “uma lista extensiva de medidas” para restringir o consumo do
cigarro e cita como exemplos a limitação da propaganda em pontos de venda, a
proibição do fumo em ambientes fechados e a alta carga de impostos.
Para Sandi, experiências de outros países demonstram que vedar
completamente a exposição de cigarros ou padronizar as embalagens não reduz a
prevalência de fumantes. Ele argumenta que não existe correlação direta entre o
banimento dos cigarros aromatizados e a diminuição do consumo.
— Fala-se muito do mentol. Se realmente fosse tão importante, o Brasil
não teria apenas 4% de participação desses produtos no mercado. Eles seriam
muito maiores. Não importa em que embalagem o cigarro esteja, se é exposto ou
não, se contém ingredientes ou não. O fato é que vender cigarro para menores de
18 anos é crime. Não deveria ser vendido — afirma.
Presentes em 48% das cidades da Região Sul, os produtores de fumo também
se opõem ao PLS 769/2015. Para Giovane Wickert, prefeito de Venâncio Aires (RS)
e representante da Associação dos Municípios Produtores de Tabaco, o projeto
pode quebrar a principal fonte de renda dos agricultores:
— Minha cidade tem pouco mais de 70 mil habitantes. A maior produção
rural é o tabaco. Somos um dos dez maiores exportadores do Rio Grande do Sul.
Em torno de 80% dos produtores têm envolvimento com a produção e a cadeia
produtiva. A aprovação desse projeto vai na contramão e pode gerar uma crise
muito grande em municípios como o meu — advertiu, durante audiência no Senado.
Diversificação
No site do Instituto Nacional do Câncer (Inca), a saída apontada para o
dilema entre combater o fumo e manter a renda dos produtores é a diversificação
da atividade agrícola nas áreas onde hoje predomina o tabaco. Mas as saídas não
são tão simples, conforme apontaram participantes de um seminário sobre o tema
realizado em junho de 2017, na cidade de Florianópolis, pela Secretaria
Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (Sead) em parceria
com a Comissão Nacional para Implementação da convenção para o controle do
tabaco.
A ausência de redes de comercialização dos produtos alternativos
foi mencionada pela maioria dos presentes como o principal entrave à
diversificação, apesar de experiências bem-sucedidas nesse campo, como no caso
do cultivo do cogumelo. Enquanto a articulação das políticas públicas é
precária, a compra do fumo é garantida pela indústria. Outras dificuldades
identificadas foram a curta duração dos editais de Assistência Técnica e
Extensão Rural (Ater), que é de três anos, e a incerteza quanto à continuidade
desses projetos de assistência.
“Respeitando a autonomia dos produtores do tabaco, nós estamos
construindo alternativas para ele tomar a decisão de mudar a sua vida",
disse no evento o então subsecretário de Agricultura Familiar da Sead, Éverton
Paiva. Ele, porém, admitiu que a falta de estudos a respeito da
sustentabilidade econômica da diversificação e sobre os benefícios à saúde dos
fumicultores dificultam o maior reconhecimento do programa. Um dado positivo
levado ao seminário é que o Brasil é o único país a ter um programa desse tipo.
"Vários países do mundo querem aprender conosco", disse ao abrir o
evento o então coordenador de Assuntos de Agricultura Familiar e Cooperação
Internacional da Sead, Hur Ben Corrêa da Silva.
O senador José Serra contra argumenta lembrando que 80% da produção
nacional de tabaco é destinada à exportação, segmento não afetado pelo PLS 769/2015.
Ministro da Saúde entre 1998 e 2002, Serra ressalta que o foco do projeto é o
bem-estar dos consumidores brasileiros.
— Não é porque uma atividade gera emprego que é necessariamente boa para
sociedade. Se o cigarro faz mal, independentemente de gerar emprego, não tem
sentido deixarmos de combater o tabagismo. A indústria está defendendo seus
interesses, que são contrários à saúde da população. Não é preciso me alongar
sobre os males que o cigarro causa e o peso que tem em cânceres e doenças
pulmonares.
Do lado oposto está o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), que teme que
as restrições ao consumo tragam prejuízo aos produtores de tabaco da Região Sul
e dos estados de Alagoas e Bahia:
— O projeto vai na direção de acabar com a produção. Mas isso não vai
acabar com o uso do fumo, porque Estados Unidos, China e Índia são grandes
produtores e não vão acabar com a lavoura. O projeto dá um tiro no pé em cima
da produção nacional. Essas empresas vão fazer o quê? Já fecharam indústrias
nos estados do Sul em função do contrabando, que é o que nós temos que coibir.
O PLS 769/2015 aguarda o relatório da senadora Leila Barros (PSB-DF) na
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Se for aprovada na CCJ, a
matéria segue para a Câmara dos Deputados, a não ser que haja um recurso
assinado por pelo menos nove senadores para a votação do texto no Plenário da
Casa. Mas o projeto ainda tem grandes chances de ser examinado na Comissão de
Agricultura e Reforma Agrária (CRA).
Serra e Heinze: senadores discordam
sobre novas restrições ao consumo de cigarros (fotos: Waldemir Barreto/Agência
Senado)
Se depender do apoio de profissionais que lidam diariamente com tumores
malignos e veem no tabagismo uma “epidemia”, a proposta seguirá em frente:
— Esse projeto é bem-vindo. O cerceamento da propaganda e também de
situações de risco que envolvam o tabagismo, como fumar no trânsito e com
menores no veículo, são medidas efetivas para diminuir o consumo do tabaco e
[criar] uma certa consciência social de que o consumo é prejudicial. Já a
proibição da adição de produtos aromáticos ao tabaco combate uma iniciativa da
indústria de tornar seus produtos mais aceitáveis principalmente aos jovens e
adolescentes. Acreditamos que é um aprimoramento necessário em nossas leis —
opina o cirurgião oncologista e diretor do Instituto de Extensão do Instituto
de Ensino e Pesquisa do Hospital de Amor, ex-Hospital do Câncer de Barretos,
Vinicius de Lima Vazquez.
Ele é igualmente a favor de medidas de viés econômico:
— O aumento do preço e alta tributação de tabaco são iniciativas
bem-sucedidas para desestimular o consumo do tabaco ao redor do mundo e
provavelmente um dos fatores que tem evitado o aumento do consumo no Brasil.
Retirar esta medida é um retrocesso que irá impactar negativamente na saúde dos
brasileiros.
Diante das recomendações da OMS, diminuir impostos seria uma questão
delicada, na opinião do doutor em economia pela Universidade de Brasília (UnB)
Nelson Paes Leitão. Mas ele vê pouco espaço para mais rigor tributário, o que
respalda a linha de ação proposta pelo projeto de José Serra e as possíveis
medidas diretas sobre o contrabando:
“A tributação elevada, os baixos custos de produção no Paraguai, a
existência de canais de distribuição e a fragilidade nas fronteiras brasileiras
ajudam a compreender um quadro difícil. O quadro que emerge deste estudo é
bastante complexo. Apenas aumentar alíquotas sem aprimorar a repressão ao
mercado ilegal enfraquece o uso da tributação como instrumento de combate ao
fumo. Por outro lado, a redução de alíquotas vai de encontro às recomendações
da OMS e a tendência seguida pelos países mais desenvolvidos. A conclusão que
se chega é que a tributação, no caso brasileiro, é um instrumento muito mais
frágil que em outros países no esforço de redução do consumo de cigarros. Isso
requer que o país continue investindo em outras formas de desestimular o
consumo, como a proibição de fumar em locais fechados, a proibição de
propagandas e as imagens negativas estampadas nos maços de cigarro.”, escreveu
o pesquisador em artigo de 2017 para a revista Planejamento e Políticas
Públicas (PPP) do Ipea.
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