– Direito & Cidadania –
A democracia de Pilatos e a crise de representatividade no Brasil – II
Dr. Besaliel Rodrigues
Dando segmento a abordagem sobre a origem e o atual estágio da crise crônica da representatividade popular no Brasil, depois da reflexão feita com base na Carta de Monteiro Lobato enviada ao então Presidente da República do Brasil Artur Bernardes, 09.08.1924 (Cf. LOBATO, Monteiro. Carta ao Excelentíssimo Senhor Presidente Artur Bernardes. In: Ferro e o Voto Secreto. São Paulo: Globo, 2010, pgs. 84 ss.), como referido anteriormente, façamos um cotejo do fenômeno aqui abordado com aquela referência bíblica citada na oportunidade passada.
Relembrando, diz Mateus 27.11-26: “11. E foi Jesus apresentado ao presidente, e o presidente o interrogou, dizendo: És tu o Rei dos Judeus? E disse-lhe Jesus: Tu o dizes. 12. E, sendo acusado pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos, nada respondeu. 13. Disse-lhe então Pilatos: Não ouves quanto testificam contra ti? 14. E nem uma palavra lhe respondeu, de sorte que o presidente estava muito maravilhado. 15. Ora, por ocasião da festa, costumava o presidente soltar um preso, escolhendo o povo aquele que quisesse.16. E tinham então um preso bem conhecido, chamado Barrabás. 17. Portanto, estando eles reunidos, disse-lhes Pilatos: Qual quereis que vos solte? Barrabás, ou Jesus, chamado Cristo? 18. Porque sabia que por inveja o haviam entregado. 19. E, estando ele assentado no tribunal, sua mulher mandou-lhe dizer: Não entres na questão desse justo, porque num sonho muito sofri por causa dele. 20. Mas os príncipes dos sacerdotes e os anciãos persuadiram à multidão que pedisse Barrabás e matasse Jesus. 21. E, respondendo o presidente, disse-lhes: Qual desses dois quereis vós que eu solte? E eles disseram: Barrabás. 22. Disse-lhes Pilatos: Que farei então de Jesus, chamado Cristo? Disseram-lhe todos: Seja crucificado. 23. O presidente, porém, disse: Mas que mal fez ele? E eles mais clamavam, dizendo: Seja crucificado. 24. Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso. 25. E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos. 26. Então soltou-lhes Barrabás, e, tendo mandado açoitar a Jesus, entregou-o para ser crucificado.
Acareando alguns versículos deste texto com o tema em tela, temos:
Nos versículos 11 a 14 Jesus é apresentado ao “Estado”, ao “establishment” da época. Cristo foi arguido sobre o exercício de seus direitos e liberdades humanas e espirituais. O diálogo “És tu o Rei dos Judeus?” e a resposta “Tu o dizes”, ou seja, “Sim”, modo usual de afirmar na literatura grega, latina e hebraica (Cf. T. Hieros Kiliaim, fil. 32.2. In CHAMPLIN, R. N., Ph. D. NT Interpretado, vol. 1, p. 682), grosso modo, equivale ao princípio da soberania popular insculpido no parágrafo único do artigo 1º da CF, que diz: “Todo poder emana do povo...” (Rousseau). Aqui fica frágil a concepção de Monteiro Lobato de que o povo tem “uma capacidade artificial de voto” (Cf, PÁDUA, Thiago Aguiar de. A balzaquiana constituição. Brasília-DF: Trampolim, 2018, pg. 238). Mas, de regra, o povo não é suficientemente organizado (F. Lassalle. A essência da Constituição, 1860) para, hoje em dia, responder aos “pilatos” da vida: “Tu o dizes”. Mas os “príncipes dos sacerdotes e ... os anciãos” continuam acusando a democracia de defeituosa.
Os versículos 15-17 faz lembrar as eleições, o dia da votação, oportunidade da escolha popular. Mas, sempre acontece de o povo escolher mal. Desde a época de Cristo o povo, na maioria das vezes, escolhe mal. Os ladrões, corruptos, ímprobos, incompetentes parecem sempre ter a preferência popular. Para Champlin, cit., “Barrabás representou as causas físicas, materiais e políticas, bem como os métodos carnais de obter resultados desejados nessas causas” (pg. 715). Hoje, este pragmatismo eleitoral gera distorções gravíssimas na representatividade popular, pois atinge em cheio a performance do destino da Nação, tornando os representantes populares distantes dos reais interesses do povo.
O versículo 18 faz recordar o verdadeiro “combustível” de uma eleição: invejas, mentiras, traições, hipocrisias. Pilatos sabia, tinha consciência das verdadeiras intensões da classe judaica dominante de então. Hodiernamente não é diferente. Dificilmente se encontra um político bem-intencionado e quando aparece, a velha classe política, a imprensa tradicional e os formadores de opiniões (príncipes, sacerdotes e anciãos), invejosos, buscam, por todos os meios, crucificá-lo (Ver, por todos, PIOVESAN, Cláudia R. de Morais [org.]. Inquérito do fim do mundo. Londrina-PR: Editora E.D.A., 2020, passim).
O versículo 19 aponta para os remanescentes, para os bons, para aqueles que ainda enxergam na democracia o caminho para o governo dos justos. Temos, neste versículo, a personagem esposa de Pilatos. A tradição a chama de Claudia Procla. Mesmo diante do senso resoluto de justiça desta mulher, isto nos faz refletir no que dizia Martin Luther King Jr, Prêmio Nobel da Paz de 1964: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Pilatos, mesmo sabendo que Jesus era justo e inocente, e sua esposa assim ratificou, ele escolheu o silêncio, a omissão, o “lavar as mãos”. Assim, hoje, muita gente boa, inúmeras lideranças sociais excelentes, sabe que a representação popular está viciada, adulterada, deturpada, porém preferem calar, optam pela isenção, a omissão. Continuação na próxima oportunidade.

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