domingo, 23 de outubro de 2011

Antenados

O flagelo do vestibular
De Luis Fernando Veríssimo

Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que me ensinou e, como eu não prestava atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que é amarrar sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom Beaujolais pelo rótulo. E tenho um certo jeito ─ como comprova este exemplo ─ para usar frases entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior, recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira:
─ Olha na enciclopédia, pô.
Este naco de autobiografia á apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio do vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isso não impede que todos os anos eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e, no fim, olhando para o infinito com aquele ar de sobrevivente da marcha da morte de Bataan*. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer minha simpatia, como oferecia uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno.
─ Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.
─ Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.
─ Então roa as próprias unhas. Essas são as minhas.
─ Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que calmante me excitava. E, quando conseguia dormir, sonhava com escolhas múltiplas: a) fracasso, b) vexame, c) desilusão. E acordava gritando: Nenhuma dessas! Nenhuma dessas! Foi horrível.
─ Só não compreendo por que você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida.
─ Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho. E o cretino está na praia enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.
Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá, diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fibra por fibra o gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da Floresta Amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:
─ Ele foi um dos que não voltaram.
Em vez de:
─ É uma besta!
Os candidatos a Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos ─ aliás, uma segurança para a população ─, mas as obras do metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo.
O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda há os cursinhos pré-vestibulares. Em São Paulo os cursinhos usam helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos. Daí para o napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, a interferência do Reagan para negociar a paz é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que, para o professor se comunicar com as filas de trás, tem de usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para a rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só têm dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.
O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma de suas provas.
─ Sei não. Acho que entrei pelo cano. O inglês não tava mole.
─ Mas, meu filho, hoje não era inglês. Era Física e Matemática.
─ Oba! Então acho que fui bem.

(VERISSIMO, Luis Fernando Veríssimo. O flagelo do vestibular. In: Antologia de crônicas: crônica brasileira contemporânea; organização e apresentação de Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Moderna/Salamandra, 1ª ed., 2005, pp. 128-31, “Lendo & Relendo”.)

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Bataan: “Célebre batalha entre os exércitos do Japão e EUA, ocorrida nas Filipinas durante a Segunda Guerra Mundial.”


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