Seu Ralf em Minha Memória
por Ruben
Bemerguy
Minha
escrita é comum. Muito comum. Não escrevo como desejo. De verdade, acho que nem
mesmo escrevo. Tenho muita vergonha de fazê-lo. Moldo linhas que, ao fim, nem
mesmo eu as compreendo. Traços tortos, sempre. E quando estou triste, nenhum
papel consigo tatuar. Eu sou assim, homem de imensas limitações e, pior,
obrigado a conviver com essa impiedosa deficiência.
Exatamente
por isso não consigo escrever uma única carta. E nada substitui uma carta. E-mail, mensagem, telefonema,
tudo é privado de calor. Só a carta é chama. Só ela diz. Só ela cura. Esse é um
exemplo cruel de minha mediocridade. Assim, as pessoas que gosto não sabem e
não saberão jamais que as estimo muito, porque além de não saber escrever, sou
tímido e, por isso, também não costumo mandar cartas. Por vezes chego a comprar
envelopes, coloridos até, pra espantar esse próprio mau-olhado caligráfico. Não
dá certo. Outras vezes busco superar minha insuficiência com cumprimentos
modestos sempre que encontro conhecidos. Um leve ir e vir do pescoço e a cabeça
já informa a cortesia. Mas isso, faço com todos, quase que indistintamente, com
as pessoas que gosto e as que não gosto.
Há,
entretanto, uma diferença entre cumprimentar umas e outras. É que as que gosto
endereço um beijo incontido e calado. O gesto pode ser o mesmo, mas o beijo só
entrego para as pessoas que gosto, mesmo que elas não saibam disso. Ultimamente
esses beijos têm saído de meus olhos, exatamente para que ninguém saiba do meu
beijo. É segredo que guardo a chave.
E assim,
a falta de escrita e o acanhamento sempre esconderam meus amores. Sinto-me
seguro desse jeito esquisito, embora isso me provoque luxação na alma. Há
noites em que não contenho as lágrimas, permanentes inimigas, embora
sistematicamente as repugne e as expulse, sem qualquer êxito. Delas, não
consigo me ocultar, sou refém.
Hoje, por
exemplo, soube da morte de Seu
Ralf Medellim. Sempre desejei escrever uma carta a Seu Ralf, mas, pelas razões
ditas, nunca o fiz. Muito
embora lhe tenha enviado meus
beijos silenciosos, isso não foi o bastante para conter meu pesar de não ter
escrito. Seu Ralf era um jovem. Disseram-me que amanhã
completaria oitenta e oito anos de vida. Não sei bem. Nunca falamos em idade.
Eu, sempre senil, temia o assunto. Lembro que todas as vezes que nos encontrávamos
me apontava uma vontade súbita de abraçá-lo. Uma manifestação inexplicável de
meus sentimentos.
O
conheci, há bem pouco tempo, em uma viagem de trem. Íamos de Macapá a Serra do
Navio. Sei que a estrada de ferro que nos guiava havia sido construída por ele. Seu Ralf dizia até do leve balanço de nossa
carruagem. Dizia de cada dormente. Mas Seu
Ralf dizia de um modo
diferente de dizer. É como fosse enamorado da estrada de ferro. Aliás, essa
sensação passou a ser tão presente em mim, que depois desse dia eu nunca mais
me referi àquela estrada como sendo de ferro. Pra mim era o jardim do Seu Ralf. Nas outras vezes em
que a vi, vi tudo, menos ferro. Vi flores e sempre tentei adivinhar as
confidências de Seu Ralf com essa estrada de flores.
Outro dia,
um amigo que visitava Macapá, me disse que gostaria de ir até Serra do Navio de
trem. Disse-me que nunca havia andado de trem. Metrô já. Trem não. São
coisas distintas, como se sabe. O primeiro é de ferro. O outro de flores. Pelo
menos a estrada é. Eu garanto. E eu falei ao meu amigo sobre a estrada de
flores. Ele ouviu, foi atencioso, mas caçoou de mim. Não sei o que mais pensou
e nem sei se fez a viagem e, se fez, não sei o que viu, se ferro ou flores. É
curioso, mas quem não deitou os olhos sobre Seu
Ralf tem um certo desvio
ocular tão profundo que consegue ver ferro onde só existem flores. Coitados.
Mas,
sobre nada disso falei com Seu
Ralf. Não saberia dizer falando. Só escrevendo. Mas se não escrevo cartas
não poderia dizer. Sinto muito por isso e me censuro também. Daqui pra frente
eu não saberei mais de Seu
Ralf. Desconfio que continue a construir estradas de flores. Disseram-me
que quis o corpo cremado e as cinzas lançadas ao rio. Ficarei atento. Esse é um
indicativo seguro de que das águas do Amazonas outras flores virão.
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