segunda-feira, 19 de março de 2012

Coluna Só Crônicas

Seu Ralf em Minha Memória

por Ruben Bemerguy

Minha escrita é comum. Muito comum. Não escrevo como desejo. De verdade, acho que nem mesmo escrevo. Tenho muita vergonha de fazê-lo. Moldo linhas que, ao fim, nem mesmo eu as compreendo. Traços tortos, sempre. E quando estou triste, nenhum papel consigo tatuar. Eu sou assim, homem de imensas limitações e, pior, obrigado a conviver com essa impiedosa deficiência.

Exatamente por isso não consigo escrever uma única carta. E nada substitui uma carta. E-mail, mensagem, telefonema, tudo é privado de calor. Só a carta é chama. Só ela diz. Só ela cura. Esse é um exemplo cruel de minha mediocridade. Assim, as pessoas que gosto não sabem e não saberão jamais que as estimo muito, porque além de não saber escrever, sou tímido e, por isso, também não costumo mandar cartas. Por vezes chego a comprar envelopes, coloridos até, pra espantar esse próprio mau-olhado caligráfico. Não dá certo. Outras vezes busco superar minha insuficiência com cumprimentos modestos sempre que encontro conhecidos. Um leve ir e vir do pescoço e a cabeça já informa a cortesia. Mas isso, faço com todos, quase que indistintamente, com as pessoas que gosto e as que não gosto. 

Há, entretanto, uma diferença entre cumprimentar umas e outras. É que as que gosto endereço um beijo incontido e calado. O gesto pode ser o mesmo, mas o beijo só entrego para as pessoas que gosto, mesmo que elas não saibam disso. Ultimamente esses beijos têm saído de meus olhos, exatamente para que ninguém saiba do meu beijo. É segredo que guardo a chave.

E assim, a falta de escrita e o acanhamento sempre esconderam meus amores. Sinto-me seguro desse jeito esquisito, embora isso me provoque luxação na alma. Há noites em que não contenho as lágrimas, permanentes inimigas, embora sistematicamente as repugne e as expulse, sem qualquer êxito. Delas, não consigo me ocultar, sou refém.
Hoje, por exemplo, soube da morte de Seu Ralf Medellim. Sempre desejei escrever uma carta a Seu Ralf, mas, pelas razões ditas, nunca o fiz. Muito embora lhe tenha enviado meus beijos silenciosos, isso não foi o bastante para conter meu pesar de não ter escrito. Seu Ralf era um jovem. Disseram-me que amanhã completaria oitenta e oito anos de vida. Não sei bem. Nunca falamos em idade. Eu, sempre senil, temia o assunto. Lembro que todas as vezes que nos encontrávamos me apontava uma vontade súbita de abraçá-lo. Uma manifestação inexplicável de meus sentimentos.

O conheci, há bem pouco tempo, em uma viagem de trem. Íamos de Macapá a Serra do Navio. Sei que a estrada de ferro que nos guiava havia sido construída por ele. Seu Ralf dizia até do leve balanço de nossa carruagem. Dizia de cada dormente. Mas Seu Ralf dizia de um modo diferente de dizer. É como fosse enamorado da estrada de ferro. Aliás, essa sensação passou a ser tão presente em mim, que depois desse dia eu nunca mais me referi àquela estrada como sendo de ferro. Pra mim era o jardim do Seu Ralf. Nas outras vezes em que a vi, vi tudo, menos ferro. Vi flores e sempre tentei adivinhar as confidências de Seu Ralf com essa estrada de flores.

Outro dia, um amigo que visitava Macapá, me disse que gostaria de ir até Serra do Navio de trem. Disse-me que nunca havia andado de trem. Metrô já. Trem não. São coisas distintas, como se sabe. O primeiro é de ferro. O outro de flores. Pelo menos a estrada é. Eu garanto. E eu falei ao meu amigo sobre a estrada de flores. Ele ouviu, foi atencioso, mas caçoou de mim. Não sei o que mais pensou e nem sei se fez a viagem e, se fez, não sei o que viu, se ferro ou flores. É curioso, mas quem não deitou os olhos sobre Seu Ralf tem um certo desvio ocular tão profundo que consegue ver ferro onde só existem flores. Coitados.

Mas, sobre nada disso falei com Seu Ralf. Não saberia dizer falando. Só escrevendo. Mas se não escrevo cartas não poderia dizer. Sinto muito por isso e me censuro também. Daqui pra frente eu não saberei mais de Seu Ralf. Desconfio que continue a construir estradas de flores. Disseram-me que quis o corpo cremado e as cinzas lançadas ao rio. Ficarei atento. Esse é um indicativo seguro de que das águas do Amazonas outras flores virão.


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