Era uma vez, numa Terra Brasilis, um grupo de pobres coitados que tinha o desplante de profanar a festa mais sacra daquele povo: o carnaval. Cinco dias ininterruptos de comemoração da carne... Alguns emendavam até seis ou sete! E era lindo: Blocos desfilando pelas ruas, muita música, muita dança, muito suor, muita bebida, regimentos inteiros de homens urinando pelas calçadas, casais copulando pelos becos escuros - ou não tão escuros assim -, doenças sexualmente transmissíveis a se fartar... Uma maravilha!
A festa do povo nas ruas chegava a tal esplendor que muitos despiam-se ali mesmo, promoviam orgias de alegria, competiam pelo maior número de línguas beijadas, e, apesar de toda a carne exposta, famílias inteiras, inclusive criancinhas de colo, regozijavam-se sob o sol das paixões carnavalescas. Tudo tão lindo... Estavam "brincando". "Brincando carnaval". Eram todos crianças outra vez. Crianças felizes, sem preocupações adultas, sem patrão, sem sermão, sem Deus, sem neura. Durante aqueles cinco dias de festa, tudo era perfeito na Terra Brasilis. Não havia dor, não havia mal, não havia crime, afinal, tudo era consensual.
Mas então aqueles pobres coitados. Uma classe um tanto burra e sem-graça, que, devido à sua incapacidade de compreender as delícias carnavalescas, durante a semana de festa escondia-se em casa e passava o feriado em clausura. Eram duramente marginalizados, excluídos. Se não sabiam aproveitar a única alegria da Terra Brasilis, que valor poderiam ter? Seres anormais, bizarros, bichos exóticos que hibernam em pleno verão, enquanto todos os outros bichos bem-ajustados divertem-se lá fora a valer.
Essa classe marginal trancava-se nos lares e não viam a banda passar. Eles não assistiam aos desfiles na televisão. Não se importavam com nada que dissesse respeito àquele ritual tão sacro... Eram pecadores imundos! Ao invés de beber e coabitar pelas ruas, ao som do sambinha bom, o que faziam? Assistiam a filmes em casa com os filhos, maridos, esposas! Veja se pode... É inacreditável. Iam comer pizza com a família, sempre encontravam algum estabelecimento aberto. Iam ao cinema, ao teatro, ao shopping... Até à igreja iam, mas carnaval, nada! Achavam nesses locais outros seres marginais, que também preferiam a pacatez do cotidiano aos cinco dias de folga carnal... Mesmo os capitalistas mais ferrenhos fechavam seus negócios em busca de merecida folga, mas os marginais, os marginais não! Estes insistiam em se isolar da grande festa.
Os mais imperdoáveis comportamentos dentro da classe dos excluídos vinham dos jovens. Algumas dessas crianças, professando extremo insulto à alegria do feriado, gastavam os dias de festa ouvindo música, cozinhando com os amigos, mergulhando numa maratona de suas séries favoritas ou lendo em seus quartos. Lendo! Abomináveis eram as pilhas de livros e roteiros de leitura amontoados aos pés da cama, enquanto sorriam no conforto de suas páginas secretas, de costas para as janelas, onde, do lado de fora, outros jovens mais inteligentes brincavam a valer, fazendo de seus corpos playgrounds ambulantes.
É difícil tentar compreender o que se passa na mente desses pobres coitados. Eles se negam a participar de tudo o que há de mais lindo na terra. As comemorações carnavalescas são a própria essência da beleza da carne... Na Terra Brasilis, esse carnaval é o único momento em que os habitantes se esquecem dos desastres naturais, das chuvas que alagam as cidades, das secas que matam crianças e animais, das corrupções políticas, dos crimes sexuais, dos roubos, dos assassinatos, dos lares despencados, da rouquidão do pranto e do vazio da alma.
E mais difícil ainda é compreender o estranho comportamento que adota a classe marginal dos renegados ao final de tudo, quando todos os outros vão aos poucos voltando à realidade, quando ainda estão despindo as fantasias, descobrindo as feridas dos muitos beijos, limpando as secreções da pele, levantando-se das sarjetas onde adormeceram tolamente ébrios, enquanto sentem o vazio finalmente afundar-lhes as almas, junto com a tristeza inconsolável, a ressaca moral atingindo o espírito, e aí então os pobres coitados saem de suas tocas com os semblantes tranquilos e graves de quem nunca se esqueceu de que a Terra Brasilis é o reflexo triste de seu próprio carnaval: no palco do espetáculo, comemoram-se com loucura todas as misérias humanas, enquanto que, lá atrás, na coxia, o país inteiro explode, pronto para tragar os foliões pelo resto do ano...
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