sexta-feira, 17 de maio de 2013


A (des) obrigação de ser esperto

Existe um irritante hábito - não sei se exclusivo de brasileiros, mas que pode ser observado facilmente no cotidiano do país - caracterizado pela tendência que temos de sempre cobrar dos outros - sobretudo se forem pais em relação aos filhos - uma "postura campeã", até mesmo em se tratando das situações mais banais, quando não existe qualquer competição real estabelecida. Neste caso, essa necessidade de cobrar o bom resultado parece se firmar num nível subconsciente, praticamente imperceptível, mas ainda assim perigosa à convivência e à liberdade alheia (todos precisamos ser livres até mesmo para perder).
Há alguns casos clássicos em que exigir determinados resultados pode se transformar em tirania, atitude opressora sobre outrem, e um exemplo disso se encontra nos processos de vestibular. Vemos estudantes massacrados física e psicologicamente, seja pelos pais, pela escola, pelos amigos, por demandas sociais... 
No entanto, admite-se, essa obrigatoriedade cega de um desempenho estudantil prodigioso não chega a ser hábito único do Brasil. A corrida educacional é universal, assim como a sede de vitória e a ambição humana. Sendo assim, a história do vestibular e a gana universal de vencer, apesar de bem misturados à brasilidade de nosso povo, não expressam necessariamente o comportamento mais curioso (e potencialmente condenável) investigado neste texto. O buraco é mais embaixo. E o exemplo que melhor pode ilustrar a situação aqui desvendada se encontra, nada mais, nada menos, que no trânsito (caótico) das cidades brasileiras.
Pode parecer exemplo maluco e aleatório, mas experimente não atravessar a rua quando o sinal vermelho de pedestres começar a piscar, anunciando o iminente término da travessia. É claro que sobram ainda alguns segundos até acabar de vez o tempo, mas você, pessoa precavida que é, decide que é melhor parar e esperar pelo próximo sinal verde. Então, o que acontece? Os motoristas, dentro dos carros parados à beira da faixa, começam a buzinar loucamente, querendo forçá-lo a atravessar a rua, querendo mostrar a você que, sim, dá tempo, e que é patetice ficar ali estagnado, se você pode correr feito um alucinado e poupar espera (um minuto, quando muito...).
E há ainda aquelas vezes em que se forma um filhote de engarrafamento, e os carros, então, mesmo com o seu sinal verde, resolvem estancar antes da faixa, à espera da dissolução do congestionamento. Assim, enquanto a situação não se ajeita, bons samaritanos que são, eles começam outra vez a buzinar para você, você, que está ali, esperando calmamente que o seu próprio sinal abra. E cai a chuva histérica de buzinas dos camaradas motoristas, naquela exigência (não necessariamente lógica e nem um pouco prática) de que o transeunte atravesse a rua correndo, já que eles lhe fizeram o favor de brecar antes da faixa.
Talvez essa histeria coletiva no trânsito seja só uma forma que os motoristas encontraram de "educar" os pedestres para serem mais espertos... Talvez os motorizados sonhem com um mundo onde ninguém perca tempo na calçada. Talvez só queiram ajudar. Talvez só desejem ensinar aos outros a administração do tempo de travessia, acrescentando alguma dose de aventura ao processo.
Mas acontece que nenhum de nós tem a obrigação de ser um "esperto de trânsito". Não é um dever constitucional correr pelas ruas loucamente, só para não perder os últimos segundos de sinal verde dos pedestres; ou porque os motoristas, impacientes, acham que você é bobo se fica plantado no meio-fio, já que o trânsito não está andando. Parece que não consideram o fato de que, basta o engarrafamento desafogar, que todos os automóveis acelerarão sem pena - dane-se o "esperto" que caiu no conto da "buzina amiga"...
O mesmo sentimento que motiva os motoristas no trânsito, aqueles a exigirem uma postura proativa dos pobres pedestres, é também o que move as "lições de vida" de muitos pais brasileiros. Aquela história de forçar o menino a "aprender a se virar", obrigá-lo a ir pedir informação, chamar táxi, atravessar a rua sozinho, dirigir-se por contra própria à moça do caixa (mesmo que não tenha altura suficiente)...
Enfim, tudo isso caracteriza um padrão de comportamento que, aos olhos dos pais, é muito saudável. "Meu filho vai crescer desenrolado", "meu filho não nasceu para ser pateta", "filho meu não tem essas frescuras de timidez", "filho meu não perde nunca"...
Acontece que ter ou não vergonha de fazer o próprio pedido na lanchonete ou escolher o momento mais alucinante e perigoso para se atravessar uma rua não fazem de uma criança, ou de qualquer pessoa, um vencedor. Assim como - outro exemplo de caso - quando uma dessas misteriosas maletas de dinheiro é perdida e o objeto é devolvido ao dono, a pessoa que tomou a iniciativa da devolução não agiu tolamente, mesmo "podendo ficar com o dinheiro"... (é a lógica de muitos). Nada disso é vencer.
Existe uma necessidade premente da tomada de consciência de que não estamos criando crianças para uma competição incessante, vinte e quatro horas por dia. Essa é uma das ideias mais estapafúrdias da sociedade brasileira. Treinar o povo para ser "esperto". Dar jeitinho em tudo. Reneguemos essa esperteza que se preocupa com coisas tão toscas e imbecis, enquanto ignora o que é importante...
Ademais, se fosse mesmo o caso de ganhar ou de perder, que mal há em perder de vez em quando? Ou em perder mais do que ganhar? Não criaremos derrotados, mas, pelo contrário, criaremos seres humanos. Mostrar a uma criança, jovem, ou até mesmo a um adulto, que existe sempre a possibilidade da derrota e do fracasso, é apenas um modo realista/carinhoso/racional de dizer: "O que quero de você não são vitórias. Quero apenas que você aprenda a viver neste mundo, ganhando ou perdendo".
Penso que não se deve cobrar vitórias de ninguém, não se o intuito for apenas vencer. Fica a impressão sufocante de que temos a obrigação de ser espertos sempre, e de que tudo na vida é competição, quando, na verdade, muito mais válido e muito mais nobre é compreender e entender como lidar com a perda, já que ganhador todo mundo sabe ser, e o sabor de uma derrota instrui muito mais que uma efêmera medalha.

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