sexta-feira, 24 de maio de 2013



Crônica dos verbetes



Há muito tempo que minha existência se imiscui com a dos dicionários. Nada muito complicado. Eu apenas gostava de folheá-los aleatoriamente, e ir descobrindo palavras, absorvendo-as, fosse gratuitamente ou à pretensão de novos termos - "bonitos", "difíceis", "polêmicos" - para usar por aí e impressionar os adultos... Fiz isso longamente. 
Uma vez encontrei no estreito armário cinza do vovô (ao qual ele, opulento, batizou "biblioteca") um dicionário quadradão, de capa preta, páginas amareladas, pesando boas três toneladas. Foi o paraíso. Descobri a "nostalgia", o "elã", o "vitelino", o "diáfano", o "onírico", o "resvalar"... 
Depois, estava já no ensino médio quando me bateu aquela primeira vontade real de escrever. Escrever um romance, com ótimos: início, meio, fim, enredo, enunciação... Até então, só me aventurara esparsamente com crônicas pingadas, contos truncados e poemas balbuciantes de infância. Comecei assim a anotar a minha história em inutilizadas agendas de anos passados, que ia encontrando pela casa da vovó, com o afã de uma principiante sedenta por letras. Nessa época, meu melhor amigo era um desses dicionariozinhos escolares, cujas capas trazem a bandeira do Brasil. E mais uma porção de palavras brotou para mim. Nunca terminei essa primeira história, que era boba e ingênua, mas foi experiência gostosa e frenética dedicar-me a escrevê-la. 
Sim, a história ficou sem fim. Mas meu léxico expandiu-se consideravelmente, e fui feliz. Ainda hoje, muitas vezes o que me salva é um adjetivo bem despejado, herança desses tempos..., coisas como um "deveras" aqui e ali, um "visceral", um "outrossim", enquanto rio dessa prolixidade gratuita, mas eficaz.
Bem, aí está o esboço de uma trajetória dicionarizada. Os dicionários, para mim, sempre foram alvo de simpatia, afeição. Não tanto por querer alimentar alguma espécie de afetação pernóstica/pedante, mas mais pela delícia de encontrar em letras pequenininhas e ao acaso aqueles termos que, graças a especial magia, acabavam se fixando em minha mente feito cola e dando novas possibilidades de falar do velho mundo que eu redescobria.
Certa vez, na escola, numa aula de redação em que minha querida professora Josiane explanava a respeito de gêneros textuais, mas digamos assim, excêntricos, cobrados em alguns vestibulares do país, citou-se a ocasião em que a USP (se não me falha a memória) pedira aos candidatos que escrevessem na folha de uma das redações exigidas um "verbete de dicionário". 
Lembro-me do estranhamento que a sala sentiu (pelo menos os que prestavam atenção...) ao saber que esse tipo de coisa caía em provas por aí. A professora então nos explicou do que se tratava um verbete, leu modelos, etc. À época, apesar de toda a paixão que eu permanecia cultivando pelos dicionários, cheguei a pensar em como seria chato e difícil conseguir produzir um texto assim. Embora de extrema singeleza, concisão, simplicidade, não se deixe enganar... Imagine ter de conceituar, ao melhor estilo Aurélio, um "amor", uma "justiça", uma "dengue" ou quem sabe até uma "nuvem de compartilhamento digital" (ou coisa que o valha, seja lá como os geeks chamam). Difícil, difícil... O tão-simples tende a ser o mais complicado.
E toda essa história dos verbetes simplesmente para compartilhar com os leitores a curiosa e afável matéria que li recentemente, no site "Catraca Livre", por indicação de um amigo, a respeito de um professor-autor colombiano que, durante os anos em que lecionou a crianças, compilou uma série de conceituações (maravilhosamente) dadas pelos infantes para algumas palavras que ele propunha. A maior parte delas muito simples - pelo menos assim encaradas por nós, os pretensos "crescidos" -, mas de resultados incríveis. 
Bem, este texto não vem tratar especificamente sobre a brilhante epifania literária do tal professor, Javier Naranjo, ou sobre o seu livro reeditado agora para ser novamente lançado (a obra é "Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças", com mais de 500 verbetes criados pelas crianças de uma zona rural da Colômbia). Trata-se, sim, sobre poder navegar um pouco no universo pueril quase que perdido em definitivo para os adultos, não fosse a chance singular de reavivá-lo por meio de vislumbres como o que agora nos mostra através das palavras ditadas pelos pequenos. Aqui vão então alguns dos conceitos que as crianças definiram (e a reflexão da semana fica nas linhas a seguir, mais sábias do que qualquer outra coisa que eu ou você, leitor crescido, poderíamos pensar):
"Adulto: Pessoa que em toda coisa que fala, fala primeiro dela mesma" (Andrés Felipe Bedoya, 8 anos).
"Ancião: É um homem que fica sentado o dia todo" (Maryluz Arbeláez, 9 anos).
"Água: Transparência que se pode tomar" (Tatiana Ramírez, 7 anos).
"Branco: O branco é uma cor que não pinta" (Jonathan Ramírez, 11 anos).
"Igreja: Onde a pessoa vai perdoar Deus" (Natalia Bueno, 7 anos).
"Sexo: É uma pessoa que se beija em cima da outra" (Luisa Pates, 8 anos).
"Solidão: Tristeza que dá na pessoa às vezes" (Iván Darío López, 10 anos).

"Tempo: Coisa que passa para lembrar" (Jorge Armando, 8 anos).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ARTIGO DO GATO - Amapá no protagonismo

 Amapá no protagonismo Por Roberto Gato  Desde sua criação em 1988, o Amapá nunca esteve tão bem colocado no cenário político nacional. Arri...