sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

antenados

Bárbara de Azevedo Costa


Redescobrir o sonho

Logo que entrei na faculdade, albergando no peito o desejo de aprender toda a técnica necessária para um dia me tornar uma escritora de qualidade, fui logo desestimulada por um sistema um tanto bruto que vem nos dar as boas-vindas quando ainda cheiramos a leite e a ensino médio, cheios de expectativas surreais e pavores indescritíveis.
Lembro-me bem das carrascas-de-sonho que enfrentei no meu primeiro semestre no curso de Letras. Foram as professoras de Teoria da Literatura I e Introdução à Linguística. A de Linguística, velha de guerra, com um adorável cabelo meio cor-de-rosa que servia para ocultar a implacabilidade de sua inteligência e experiência, foi logo me dizendo que ali se formavam professores, e não escritores. Era uma mensagem dura, embora tenha vindo em palavras polidas, e dita com o intuito de tirar meu pobre cavalinho da chuva.
Mas relinchei, resisti, como não? Via meu sonho ruir a cada nova aula naquele novo e apavorante mundo... Era uma briga interior. Eu tentando descobrir meu nicho, tentando descobrir como é que ia fazer para escrever, se faculdade para isso não existia! O curso que julguei um dia ser de enorme ajuda, agora fechava as portas para mim.
Por sua vez, a professora de Teoria Literária foi menos contundente, mas talvez mais cruel. Dizia em suas aulas que, para ser um escritor, não servia apenas escrever, ou publicar os próprios livros, ser lido por meia-dúzia de amigos... (que dirá rabiscar continhos em guardanapos!). Dizia que um escritor de verdade, digno de assim ser nomeado, é unicamente aquele aceito pelo sistema, publicado por editoras reconhecidas, circulante no meio intelectual. E eu olhava para um lado, olhava para o outro... "Meu Deus, cadê o sonho que estava aqui?".
E assim, embora o casco do meu cavalinho ensopado fosse muito duro, cedi. Fui entendendo que essa coisa de escrever, no Brasil, no século XIX, é "tão complicada"... No máximo, se esboça. Os diários estão aí para isso! Para matar as pretensões literárias de jovenzinhos imberbes. Afinal, jamais conseguirão ser lidos por mais alguém que não seja a mãe que rouba as anotações para conferir o que anda se passando na vida do filho.
E avancei no meu curso, meio que me conformando à força com a ideia exclusiva da licenciatura. Mas, é claro, o sonho sempre esteve em mim. Caladinho, adormecido no âmago da alma. Aprendi com a experiência a não sair simplesmente por aí a divulgar as intenções do meu coração juvenil. Sobretudo não aos ilustres doutores! 
Então, em pleno quinto período de curso, faltando apenas este e mais dois para concluir a faculdade, eis que finalmente consigo me matricular naquela "cadeira" (que é como chamamos as matérias da universidade), a de Laboratório de Criação Literária. Nome promissor! E aí descubro que o sonho não está mesmo arruinado. 
Bem ali, sentado em uma rodinha junto a meia dúzia de alunos, com uma cadeira vaga a seu lado esperando por mim, está o professor que daqui para a frente, eu sei, vai me ensinar a reencontrar esse sonho literário. Estamos nas primeiras aulas, mas já é potente e indizível a sensação de encontrar um dos ilustres doutores dizendo: "Escreva!". Com uma opinião contrária à daqueles que se prendem a uma sistematicidade e um cientificismo tantas vezes sufocantes. A Literatura é ciência, sim, no sentido de saber. Mas é toda-ela-inteira arte! 
Parece que muitos no universo das Letras se esqueceram disso. Temem a subjetividade. Sendo que as coisas subjetivas, são estas mesmas as mais concretas. Porque é preciso passar pelo sujeito para que uma ideia tome forma em símbolo, em letra. O signo reproduz o indizível. A literatura faz realidade, mentindo com a pura verdade de si.
Foi desse professor que ouvi: "A gente escreve porque tem desejo!". Antes de querer glória, antes de querer sistema literário, antes de querer ser amado... Nada disso importa. Há unicamente a vontade, e ela basta. Escritor escreve porque a mão coça e o peito almeja. 
Na Academia, minha gente! Ouvi isso na Academia, quando a chama da esperança literária já ia se extinguindo - ou pelo menos começava a fugir para as tubulações do esgoto onde repousam os sonhos marginais. Ouvi isso de um professor que confecciona seus próprios livros. Publicou já tantos, mas os mais especiais ele mesmo os fez. Não ganha nada por eles, os dá. E não é isso mesmo o que faz um escritor? Cria, brinca, doa, desvenda. Escreve. 

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