sexta-feira, 14 de março de 2014

ANTENADOS

Bárbara de Azevedo Costa

Pulga remanescente

A nossa vida é tão cheia de coisa... A nossa vida é um turbilhão. Mas é também um nada. Tanto acontece no curto espaço dum dia. Uma vida muda. Há revolução por dentro. Pensamentos... Os mais confusos, os mais difíceis, os risíveis, os indizíveis.
Emoções. Sensações. Medos. Glórias triviais. Não foram cantados em nenhum poema. Mas são épicos.
Contudo, ao findar da lida, o dia que se esvai, o que é que se lembra dele? O caótico ser diário fica espremido e esquecido naquele curto espaço de tempo. Vira pó da rotina aquilo que fui ontem e o que estou sendo hoje. Desaparece... Perde-se todo vestígio do microscópico espetáculo. Ninguém liga para o tanto de coisas que nos perfuram e nos embalam naquelas vinte e quatro horas.
Mas então depois nos apegamos a umas coisas estranhas... Há desses mistérios. Em que repousa na mente a discussão da semana passada. A palavra, a que calaria o prepotente adversário, vem só muito tempo depois, e é remoída como carne fibrosa ao longo dos dias, retumbando na mente e quase não se apagando, não fosse a necessidade de engavetar novas mágoas e discussões de palavras certas não ditas no furor da batalha.
E perdura também aquela doce e tão viva lembrança do chocolate que se comeu... O recheio ainda canta.
Resta o murmúrio, enfim, de você andando pela estradinha de pedras vermelhas, o fim de tarde no sítio, havia pássaros do lago cantando seu pio lamentoso nas comissuras da boca da noite, e o cheiro da entardescência misturado ao aroma de castanhas de caju sendo torradas ao pé do cajueiro... E era tão pequeno aquele instante!...
E se tornou assim tão gigantesco. Grandioso o suficiente para ser lembrado com um coração que se desmancha num ardor molhado de saudades.
Como explicar? Como explicar as coisas que ficam e as coisas que vão embora?
Por um lado, você nunca conseguiu achar o par daquela meia perdida dentro do tênis, embaixo da cama. Por outro lado, ainda sente a agulha quente sob a pele, perfurando o tênue e rosado dedão da infância, na ânsia de desencavar dali a pulga que se instalou.
E em termos de lembrança não valia a meia muito mais que a pulga?
A meia não achei, tanto a queria, tanto me valia. Era coisa preciosa minha.

A pulga ainda está aqui.

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