Professor da Unifap, Doutor em Ciências pela USP, diretor do SINDUFAP
Não tem gari no samba!
Alcançada a dispersão, os foliões vibram com o desempenho da escola na Sapucaí. Julgam sua escola campeã e não veem a hora de acompanhar a apuração. Na concentração, os brincantes da próxima escola anseiam por mostrar o trabalho de todo um ano. Mas há um desfile antes. Em vestes laranja e armados de vassouras, um bloco cruza a passarela do samba. Entre as varridas, a malemolência é expressa em passos dignos dos mais extraordinários mestres-salas. Aparentemente impossíveis aos reles mortais, os passos contrariam as leis da física e deslizam no asfalto, até que o sambista se lança ao ar em um salto para em seguida voltar ao solo e continuar a mostrar o que é o samba no pé.
Os brasileiros fomos acostumados à imagem dos garis no Sambódromo após a passagem de cada escola. Demonstravam ser tanto profissionais da limpeza quanto artistas do samba. Mas, curiosamente, ao sambar durante o trabalho, ocupavam um espaço que lhes era negado, pois ingressos caros e fantasias cujos preços ultrapassam em muito seus salários não permitiam que estivessem ali para assistir ao espetáculo ou desfilar por sua escola. Em uma sociedade onde tudo é guiado pelo dinheiro, as baixíssimas remunerações que lhes são pagas fazem com que praticamente tudo lhes seja negado. Decidiram que era necessário mudar. Assim, esse ano, em luta por reajuste salarial e melhores condições de trabalho, os garis resolveram se ausentar do carnaval do Rio de Janeiro, tanto do samba quando da limpeza. Iniciaram uma greve.
Com a ausência dos garis, o desfile ficou triste e a cidade deprimente. Montes e montes de lixo se avolumaram por toda a cidade. Mais impressionante que as paredes de entulho erguidas, o mau cheiro exalado pela cidade nos fez sentir que algo estava muito errado com a cidade maravilhosa. A trilha da podridão conduz ao prédio da prefeitura por razões óbvias. Afinal, uma gestão pública que faz o que esta tem feito, fede! Há muito a se falar sobre a prefeitura do Rio, mas o mais importante nesse momento, e que possui equivalente em gestões municipais e estaduais de todo o país, é a forma como a população e os trabalhadores que lhes prestam serviço são tratados como lixo.
Mas por que tratar pessoas como lixo? Alan Greenspan, ex-presidente do Banco Central dos Estados Unidos, nos dá a resposta ao afirmar que uma das bases para o sucesso econômico é assegurar níveis elevados de insegurança nos trabalhadores. Quando a vida das pessoas é tão insegura que é literalmente um lixo, elas se submetem a qualquer coisa. Aceitam ganhar salários miseráveis, gastar quase tudo em transporte para o trabalho e, ainda assim, por medo do desemprego, se sujeitar à exploração daqueles que gastam em uma única refeição, mais do que ganham em um mês de trabalho para sustentar a família.
É exatamente nesse ponto que reside a importância da greve dos garis. Apesar de toda a insegurança a que foram submetidos, do miserável salário pago, das insalubres condições de trabalho e da ameaça de desemprego, eles representam um exemplo para todos nós, pois ousaram não se submeter. Mostraram que seu serviço é relevante e primordial para nossa saúde e existência. O nosso modelo de sociedade é incapaz de existir sem pessoas que executem a limpeza urbana. E, se enxergarmos que os garis são importantes, seremos capazes de enxergar que as demais profissões também o são e que, portanto, nada justifica que alguns ganhem salários miseráveis enquanto outros acumulem rendas milionárias à custa da exploração daqueles. Uma greve com tal relevância merece que todos nos juntemos a ela. Todo apoio à luta dos garis.
Ah, para os que acham que estamos supervalorizando alguém que "apenas" recolhe lixo, vale um lembrete. Remover o lixo da cidade é tão importante que o prefeito utilizará escolta armada para assegurar que a limpeza seja feita. A pergunta que não quer calar é: Se a limpeza urbana é importante ao ponto de sua realização justificar uma escolta armada, então por que não se remunera melhor aos funcionários que exercem cotidianamente a atividade de gari?
Por fim, um comentário de Raphael Arah que olha para a reivindicação dos trabalhadores da limpeza como arte: "A única coisa que está fazendo sentido nesse carnaval é a greve dos garis. Os garis sacam muito de intervenção urbana e instalações sensoriais. Instalação viva onipresente que se multiplica com a interação do público! Olha que incrível! E nem precisam estar presente para a performance acontecer. Aliás, a potência da performance está justamente no invisível. Performers do invisível! Olha que máximo! Garis dando aula aberta de performance urbana!! Estão mandando muito bem na composição da paisagem da cidade. A não-arte é mais arte que a arte-arte, já dizia Kaprow. Garis, amo vocês!" Olhar para uma greve de garis como uma intervenção artística de performáticos invisíveis é simplesmente o máximo. Se seguirmos o exemplo, é possível que em meio a todo esse lixo aprendamos a ser mais poéticos!
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