Receita para lembrança de infância boa
Bebi suco de acerola, devorei manga felpuda, tirando casca macia a dentada. Com abiu não me aventurei. Colava os beiços e depois vinha aquele ritual sinistro de passar manteiga nos lábios para cortar o efeito.
Subi no cajueiro mais alto do jardim, enquanto ele suportava o peso. Os troncos, pernas e coxas grossas, davam seu colo generoso, e eu e meus primos nos espalhávamos por esse sofá cascudo.
Daquele cajueiro eu olhei por muito tempo a lagoa... Uma parte da lagoa que banha o jardim. Foi nesse mesmo jardim e à margem dessa mesma lagoa, depois de uma noite de chuva, fazendo a "maré" cheia, que a gente encontrou na lama, bem pertinho da calçada, manhã seguinte, um sirizinho pálido e afogado.
E no jardim eu e minha trupe vivemos muitas aventuras... Os casamentos das Barbies e depois a construção das cabanas com folhas secas de coqueiro, já bem marrons. Era o jogo "perdidos na floresta".
Mas em muitos momentos eu estava sozinha. Vagava por aqueles matos, pensando..., ou deitava na varanda, sobre a lajota cor de vinho, sob o sol, e ia ler, até o céu ficar fininho e o cor-de-rosa do ocaso começar a aparecer.
O dia esfriava e vinham uns ventos suaves soprando de lá das águas escuras. De noitinha assim, na boca da tarde, aterrissava a melancolia doce. Era trazida nas asas de uma ave de canto lamentoso e belo que depois descobri se chamar Carão, parece.
É talvez um tipo de garça, garça escura, garça gauche, dessas com pernas desengonçadas e bicos de águia desnutrida. Verdade é que nunca consegui vê-la, apenas a ouvi.
Dava seis horas da tarde e, se não me encontrasse já na varanda, eu corria para fora, deixava tudo o que estivesse fazendo e me agarrava à grade lá de cima para ouvir o meu pássaro passar, cantando aquele cantozinho que dava tristeza na gente, mas era uma tristeza de pluma...
Tudo naquele momento pequetito parecia grande demais e eu mal conseguia registrá-lo em plenitude. Então começavam a cantar as cigarras e a noite estava enfim descida. Às vezes, raras vezes, antes do escurecer total, ainda apareciam cruzando o céu um casal de araras azuis fugidas sabe-se lá de onde. Tinham voltado a ser selvagens. Amantes brilhantes perdendo-se na noite purpúrea.
Depois eu cresci e larguei os casamentos das bonecas. As araras azuis, nunca mais as vi. Nunca mais comi manga do pé. Agora só as de supermercado, se alguém descascasse. As árvores da chácara então pararam de dar fruto... Os cajueiros, as mangueiras, o jambeiro, estéreis.
O Carão foi o único que permaneceu por ali. Ainda cantava e eu ainda o ouvia. Mas, ao sair do quarto, já não corria. No costume de quem sabe que a melancoliazinha vem amanhã... E depois... E depois...
Nunca mais subi no cajueiro. O mato debaixo dele ficou bravo, os galhos não confiáveis. As calçadas em passarelas no jardim foram rachando. Só sobreviveram as flores que não precisavam ser regadas.
Arrancáramos nos dias jovens todas as florzinhas brancas do jasmim. As flores de hibisco laranja foram devoradas pelos calangos, e os calangos, pelo Cotó, o cachorro de rabo do jeito do nome que morreu depois de trezentos anos e foi enterrado na parte de trás da casa. Me perdi de mim naquelas veredas de pedras rachadas tomadas de erva daninha e nunca mais voltei...
Mas, um dia, era sábado, desci as escadas, mármore banhado em luz solar honesta que nada escondia. Descalça, pijamas, fui até a cozinha, ali estavam meus tios, primos, avós, mãe. Talvez algo na panela de pressão. Era cozidão ou feijão...? O cheiro delicioso por toda a casa de salas sem divisão. Tudo tão velho e franco. Era a comida mas era também um algo mais, entrando pelos portões do meu nariz.
Se sábado, de fato, mais provável que estivessem fazendo churrasco lá fora. Não lembro... Os momentos a seguir, contudo, vêm com clareza. Atingi a pequena mudança de nível que conduzia à copa, e vi entrando pela porta da cozinha meu tio da tatuagem no braço com um saco plástico vermelho muito grande que trazia dentro a minha irmãzinha.
E os dois riam, sacanas... Vieram andando assim a gargalhadas, se anunciando para a multidão familiar que se amava na cozinha. E foi o momento mais lindo, o riso do tio e da irmã, a irmã feito presente, malinha de duas alças plásticas, trepada com a aba do saco sob os sovaquinhos gordos.
E meu tio parou um instante assim, olhou para mim, gargalhou, e eu tive tempo de correr ali e voltar e tirar uma apressada foto, imortalizando a cena. E os olhos dele saíram desfocados, com dois pontinhos de luz no fundo. Parece até que a alegria quis vazar. Nesse dia, voltaram as mangas, as araras, o cajueiro, o siri, o jasmim, o hibisco, os calangos e até o Cotó. Nesse dia, tudo voltou...
Sei que a realidade hoje é de uma adulta que olha para trás e sente saudades porque a mente se encarrega de encobrir e mitigar os detalhes sórdidos. Mas eu já agora só quero mesmo é lembrar das coisas lindas e simples e fundas...
Penso um instante nas infâncias desse mundo que não tiveram jardim, lago, cheiro de feijão ou churrasco aos sábados, nem livros, nem varandas, nem araras, nem Carão. Mas esqueço, e me embala só a minha vida de antes, silenciando o mundo todo... Perdoem. É que o clichê abrasador se mostra verdade pura e meiga: "Ô infância boa, a que tive!...".
Nenhum comentário:
Postar um comentário