O Haiti é aqui
Arley Costa - Professor da Unifap, Doutor em Ciências pela USP, diretor do SINDUFAP
"Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos / Dando porrada na nuca de malandros pretos / De ladrões mulatos e outros quase brancos / Tratados como pretos / Só pra mostrar aos outros quase pretos / (E são quase todos pretos) / E aos quase brancos pobres como pretos / Como é que pretos, pobres e mulatos / E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados". Esse trecho da música Haiti de Caetano Veloso remete ao tratamento diferencial que ocorre em nossa sociedade em razão da cor da pele e condições socioeconômicas. Os brancos com condição financeira minimamente razoável, não precisam se preocupar com a forma como são tratados pelo Estado. Por outro lado, aqueles com pele negra e desprovidos de uma soma confortável de recursos estão condenados a viver sob a égide do eterno receio.
Receio? Por que receio? Não há razão para isso, afinal: quem não deve, não teme! Quem tem medo de polícia é bandido! Sim, são esses os pensamentos que estão nas cabeças de muitos de nós! Mas será que é isso mesmo? Será que somos todos realmente percebidos e tratados de forma equânime e indistinta, apesar de nossos recursos e cor da pele? Imaginemos uma situação corriqueira. Estamos andando tarde da noite e vemos dois rapazes negros, com roupas que indicam pobreza, andando em nossa direção. O que fazemos? Ligamos todos nossos sensores de alerta, mudamos de calçada ou entramos em um bar. Em suma, fazemos qualquer coisa para evitar o contato, pois supomos que podem ser criminosos e que nossos bens ou vidas estão em risco. Imaginemos agora a mesma situação, mas substituamos os personagens. Os que andam em nossa direção agora são jovens brancos bem trajados. Em razão do adiantado da hora, podemos até nos precaver, mas não disparamos a mesma sensação de temor.
Claro que poderíamos fazer outras simulações, como o negro bem trajado, mas geraríamos uma complexidade difícil de tratar no espaço destinado a essa coluna. Assim, voltemos ao nosso exemplo. O que há de diferente? Por que tanta disparidade de percepção e julgamento em situações tão similares? As estruturas oficiais do Estado conseguem ser imparciais em tais situações? A resposta à última pergunta é um retumbante... não! Policiais, juízes e pessoas em outros cargos na estrutura do Estado são oriundos da mesma sociedade que todos nós e, portanto, ao executarem suas funções carregam os mesmos tipos de interpretação. E em nossas representações, é preciso dizer, lamentavelmente associamos cor da pele e pobreza à criminalidade.
A essa discriminação, alia-se o fato que o enfrentamento cotidiano da estrutura do estado com as pessoas em diferentes condições reforça o estereótipo inicial. Imaginemos, por exemplo, a atuação da polícia. Quando um policial aborda uma pessoa, enfrenta capacidades de reação distintas. O indivíduo sem recursos não tem a quem recorrer, de modo que as agressões sofridas permanecem geralmente impunes, o que permite na experiência cotidiana, os ataques às pessoas nessas condições. Por outro lado, quando o confronto ocorre com aqueles que têm recursos, há visibilidade, advogados fortes, imputação de responsabilidades ao servidor público, muitas vezes sintetizados no "você sabe com quem está falando?" Esse conjunto de resistências acabam por estabelecer uma relação de poder que faz com que as coisas resolvam-se de imediato. Por isso, quando um rapaz branco é encontrado com certa quantia de drogas, ele é considerado usuário, mas se é um negro pobre portando a mesma quantidade, vira de imediato criminoso e o caso é concluído com o encarceramento.
Mas por que tratamos diferencialmente as pessoas? Por que fazemos essa associação entre negritude e pobreza com criminalidade? O histórico de nossa sociedade alijou os negros dos direitos sociais. Primeiro, escravidão, depois, desemprego, subemprego, emprego de baixa remuneração, condições insalubres, limitações no acesso à moradia, saúde e educação dignas. Embora essas condições de negação de existência sejam a tônica da vida, para os que sempre foram marginalizados, a ideologia vigente mantém a ideia de que todos temos os mesmos direitos e condições de viver bem. Mas se a educação de qualidade é negada ao indivíduo, suas perspectivas de um futuro humanamente condizente começam a deixar de existir e, dependendo do contexto em que se está inserido, alternativas à margem do socialmente aceito podem despontar como uma estratégia de vida viável. Além disso, há pressões, as mais diversas, que estão longe da concepção mais imediata de quem cresceu sabendo que, a despeito do que fizesse, seu futuro estaria confortavelmente assegurado.
Claro que é possível alegar que há os que vivem nessas condições e não avançam rumo à criminalidade ou que rompem com o contexto e conseguem "se dar bem na vida". Mas não é possível ficar discutindo as raríssimas exceções ocorridas a despeito de todas as dificuldades. Precisamos romper com os grilhões ideológicos que perpetuam a associação entre cor da pele e criminalidade, mas para isso é necessário assegurar as condições para que mais pessoas possam construir expectativas reais de um futuro digno. Se fizermos isso, poderemos mudar a letra da música do Caetano e cantar que o Haiti não é aqui!
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