sexta-feira, 9 de maio de 2014

ANTENADOS

Caça às bruxas, Brasil



No dia 25 de abril, a página "Guarujá Alerta" publicou no Facebook o seguinte comunicado: "Boatos rolam na região da Praia do Pernambuco, Maré Manda, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra. Durante toda essa semana, recebemos diversas mensagens de seguidores sobre o fato. Se é boato ou não devemos ficar alerta".
Era tudo boato. A mentira teria nascido da confusão de informações sobre outro fato acontecido um pouco mais distante da cidade do litoral paulista, lá no Rio de Janeiro. Tratava-se de uma mulher que tentara roubar o bebê recém-nascido de uma mãe, na saída do hospital. Em jornais do Rio, um retrato-falado da sequestradora foi divulgado para ajudar a polícia a encontrar o paradeiro da criminosa.
Daí então a mesma imagem foi publicada alguns dias depois na página Guarujá Alerta, sendo tomada como da suposta bruxa que roubava crianças na cidade santista. Rapidamente a situação assumiu proporção demoníaca. Enorme parte dos mais de 50 mil seguidores da página de "denúncia" do Facebook  começaram a somar à postagem as próprias informações que obtinham - ouvindo outros piores boatos na rua - sobre a identidade e localização da raptora de crianças do Guarujá (que nunca existiu).
A balbúrdia desencadeada na internet, o clima e o caos instalados na cidade foram tamanhos, que, alguns dias depois da publicação, o horror saiu das telas do computador e se materializou com o linchamento de uma mulher que andava na rua no dia 5 de maio.
Acharam-na parecida à mulher da foto. Foi tida como a bruxa. Era dona de casa. Chamava-se Fabiane Maria de Jesus. Duas filhas. Julgada instantaneamente pelos moradores, arrastaram-na, espancaram-na, apedrejaram-na e deixaram-na em coma ali mesmo, enquanto alguns dos populares filmavam. Morreu logo depois, sem socorro possível.
Foi feita a tal justiça com as próprias mãos. Justiça baseada na crença em um boato. Justiça baseada em achares. Justiça que mata. Justiça que pune por delito que nunca existiu. Justiça que se baseia unicamente na comoção, no delírio humano, nas emoções de indivíduos inflamados, e que, portanto, não pode ser justiça.
Somos nós, brasileiros. Nós que nos orgulhamos tanto de nossa mitológica civilidade, nossa honradez, de uma tonta "alegria de viver" que parece nos elevar à categoria de humanos-unicórnios.
Não somos. Somos ainda, o que é triste, um arremedo de civilização. Porque, bem, se ser civilizado, em boa parte, significa conter os julgamentos pessoais e as leviandades individuais em nome de uma ordem geral que busque um bem comum razoável, estamos muito longe disso.
Costumamos reclamar do nosso governo e das nossas instituições que não funcionam como deveriam... Costumamos reclamar da burocracia, dos crimes impunes, da corrupção, da justiça que tarda e falha. Essas coisas, de fato, nos esmagam. Mas sofrermos com elas não legitima um poder de fazer justiça à força do braço... Nem mesmo se fôssemos "cidadãos de bem".
Não somos cidadãos de bem. Cidadãos de bem pensam, são tardios em julgar, mantêm a calma, buscam a paz coletiva e, por isso mesmo, negam as suas próprias vontades toda vez que isso possa vir a tolher a liberdade alheia. Não importa quem o outro seja - a vida dele vale tanto quanto a minha.
Ser um cidadão de bem não tem nada a ver com ter um emprego, pagar as contas, acordar de madrugada pra ir labutar, ser pai e mãe de família, dono do próprio negócio, trabalhador terceirizado, enfim... Não tem a ver com nenhuma das coisas materiais que o senso comum costuma apontar como a máxima dignidade humana. Ser "de bem" diz respeito muito mais a um estado de mente adestrado dia após dia para julgar menos e refletir mais. Somos sujos, somos porcos, somos bestas, somos hipócritas, somos cegos, somos assassinos.

publicado por Bárbara de Azevedo Costa

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