Prisões e
previsões - Arley Costa
Imagine
este fato acontecendo com o seu time do coração. Os campeões das fases
classificatórias, após jogos duríssimos, chegaram àquela final para disputar o
título. Times em campo, começa o jogo, Pedrinho rola a bola à frente, Diego
toca-a e... o árbitro apita. Um sobressalto ocorre entre jogadores, comissões
técnicas e torcidas: O que o árbitro estaria marcando antes que decorresse
sequer um segundo de partida? Mão no bolso, o árbitro caminha rumo aos dois
zagueiros, poucos metros antes de chegar a eles, eleva o cartão vermelho, uma
vez, depois outra. Expulsos! Atônitos, questionam junto ao árbitro a expulsão,
a eles se juntam o capitão, vários jogadores e a comissão técnica a invadir o
campo. Por que expulsar dois jogadores antes que houvesse sequer uma falta? O
que justificava aquela ação, se nada ocorrera? Qual a razão para tamanho
absurdo?
O
árbitro, então, do alto de sua autoridade afirma ser de seu conhecimento que aqueles
jogadores fariam faltas, algumas delas violentas. Sabia disso porque em jogos
anteriores eles haviam cometido faltas com excesso de vigor, inclusive deixando
um ou outro adversário com lesões sérias. Além disso, argumenta, ouvira os dois
conversando antes do início da partida. Falavam em levar os filhos para passear
em carrinhos de bate-bate até que os moleques cansassem e pedissem para voltar
para casa. E marcaram o encontro para as 10 horas. Tudo isso, dizia o árbitro,
era claramente um relato de que bateriam no adversário de camisa 10 até que
esse saísse do campo. Portanto, concluía o árbitro, sua ação era correta por expulsar
preventivamente os zagueiros antes que o pior acontecesse. Fruto dessa decisão,
o time com os jogadores expulsos perde o jogo e o título. O esforço e
investimento de todo um ano escorreram pelo ralo porque uma autoridade
ultrapassou os limites de sua competência e resolveu prever o futuro.
Qualquer
torcedor que visse seu time garfado dessa maneira ficaria enlouquecido e
clamaria por... Justiça! O curioso é que estão fazendo isso no Brasil, hoje,
com a vida de pessoas e uma boa parte da população acha normal, inclusive defendendo
tal arbitrariedade e argumentando que manifestantes são criminosos e que é
preciso prendê-los antes (isso mesmo, por absurdo que pareça, antes!) que façam
qualquer coisa. Na tentativa desesperada de deixar imaculada a imagem da copa, (como
se isso fosse possível após remoções, internações compulsórias e descumprimento
de princípios constitucionais), vários manifestantes foram presos
preventivamente na véspera da final, aquela da qual ficamos de fora porque
levamos de 7 a 1 da Alemanha.
As
alegações para a prisão dos manifestantes beiram as raias do ridículo e padecem
do mesmo mal de nossa historieta inicial, pois também são preventivas, ou seja,
pessoas foram presas pela suposição de que pudessem vir a cometer um crime.
Nossas leis não permitem esse absurdo, pois enterram, por exemplo, a presunção
da inocência. A ilegalidade é enorme e, por isso, várias organizações e pessoas
ligadas ao mundo jurídico estão criticando o fato e apontando o risco de
enveredarmos definitivamente no estado de exceção que vivenciamos durante a
copa.
Já
imaginou ser preso sem uma acusação concreta? Ah, mas eu não me meto em crime
nem nessas histórias de manifestações! - você diz. Tudo bem, mas imagine que
possa ser confundido com alguma outra pessoa, preso sem maiores explicações, ir
para a delegacia para só então começar a tomar conhecimento da acusação. Isso
não existe em um estado democrático de direito. Isso simplesmente não pode ser
tolerado! Distorções da verdade também compõem o cenário atual. O pai (não
ativista) de um dos manifestantes possuía uma arma em casa obedecendo toda a
legislação nacional. Não há prova de que a arma tenha sido ou de que seria
usada em qualquer ação criminosa, mas os responsáveis pelas prisões saíram
afirmando haver “armas de fogo” (atenção para o plural) com os “criminosos”. Outras
provas consistentes da intenção criminosa foram os computadores, celulares,
jornais e bandeiras apreendidos com os manifestantes. Cuidado! A maioria de nós
possui esses artefatos criminosos em casa e pode, portanto, ser preso preventivamente
por qualquer razão!
Ah,
mas havia fogos de artifício! – alguns de nós podemos argumentar numa última
tentativa de assegurar que estamos em país que preza pela democracia. Mas o uso
de fogos de artifício não é crime. E, se fosse uma infração legal, a população
estaria quase toda presa, pois usa fogos em jogos, propaganda política, shows,
festas juninas, natal, virada de ano e outras datas comemorativas. O próprio
Estado utiliza fogos de artifícios em situações diversas, inclusive ao
comemorar a Independência do Brasil. Se, porventura, o uso dos fogos resultar
em morte ou for intencionalmente usado para este fim, aqueles que desvirtuaram
a função do objeto devem ser, aí sim, penalizados.
Felizmente
o Desembargador Ciro Darlan concedeu Habeas Corpus aos manifestantes em razão
de não haver razão que justifique a detenção. Mas apesar dessa ação que ajuda a
recolocar um pouco de justiça em todo esse processo, cabe perguntar: O que fica
da copa 2014? Numa análise rápida, violência policial e jurídica para abafar
manifestações e calar indignados, ou seja, a implosão do estado democrático de
direito e a indicação dos passos iniciais de uma ditadura. Isso respinga
diretamente na chefe maior da nação, mas alguns estão se valendo do fato de que
a atuação policial diz respeito ao estado para desvincular a presidente de
qualquer relação com o fato. Entretanto, a inação da presidente deixa claro que
a mesma oferece respaldo para as injustiças perpetradas. Para quem gosta de
lembrar que foi vítima da ditadura, assistir calada e inerte todo esse absurdo
acontecer, significa, no mínimo, soterrar a própria história e a de todos
aqueles que lutaram pela redemocratização do Brasil.
Qual
o resultado final do jogo e dessas ações? Perde o time, perde o futebol: a
essência do esporte perde o sentido. No dia a dia, perdem as pessoas, perde a
justiça: a essência do Estado Democrático de Direito. Rompeu-se a igualdade por
pressuposições, definiu-se, pela discrepância de jogadores e atores sociais, o
resultado final da partida e da vida. Simplesmente não faz sentido jogar pelas
leis ou investir esforços ou recursos, se ações arbitrárias e autoritárias
fazem pender injustamente a balança para um dos lados. Esse é um caminho
perigoso. Cartão vermelho para quem arbitra “preventivamente”, seja dentro ou
fora dos campos de futebol.
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