Nem-nem
BARBARA COSTA
Que futuro teremos num país em que praticamente
nenhum poder de escolha nos é dado? Não escolhemos nossas preferências porque
não temos dinheiro para pagar. E, nessa busca mesmo por dinheiro, não podemos
escolher a faculdade que nos agrada, a profissão que nos cativa, a carreira que
nos chama. Devemos fazer tudo em prol da grana, busca incansável. O dinheiro
que compra. E comprar é possuir. Quem possui, pode. Dinheiro é poder. E é
também a raiz de todos os males...
Os filhos da burguesia ascendida, e os filhos da
classe média, esta que se aperta, mas sobrevive, contam com o amparo da
educação – seus futuros estão garantidos! Mas é um futuro que vale a pena, no
sentido de que nos permite viver e aproveitar a vida, ou esse futuro só nos
deixa continuar procurando por um algo que nunca chega? E nem mesmo a busca por
ele nos plenifica!
Enquanto o conhecimento e a sabedoria são prazeres
da vida, movidos naturalmente pela curiosidade e agudeza da mente disposta, a
educação formal é, muitas vezes, prisão, não segurança. Terminar os estudos não
assegura o futuro que deveria vir instantaneamente, e valer a pena. O sucesso
instantâneo não chega, e a vida que se vive depois do agora é opressora.
Já no Ensino Médio, você tem de se preparar para
ingressar num curso universitário que dê perspectiva financeira satisfatória.
Depois da faculdade, quando se pensou que se podia sossegar, logo aparece no
caminho o leão da pós-graduação. E faz você acreditar que é preciso seguir e
seguir na senda da formação infindável, caso contrário, não se será ninguém. E
a crença é fruto do real, porque este é o certo na cadeia da nossa realidade: o
conhecimento-compra não se esgota.
Mas é violento esse conhecimento mercadológico, que
cobra de nós um pedágio duro demais. Quem colocou esse pedágio, como pedra de
tropeço sobre o saber, foram os homens. Tudo aqui se torna cobrado. A única
maneira de vencer o invencível é pelo dinheiro – até mesmo a educação foi
leiloada.
Eis a vida da juventude, depois doutores e
pós-doutores, de uma classe abastada e de uma classe intermediária. Não se tem
liberdade nem autonomia, mas, dentre os males todos, pode-se dispor de
ferramentas ou privilégios para se optar por aquilo que for menos pior – aquilo
que garantirá poder aquisitivo. E, através do consumo, serem justificadas as
existências.
Contudo, os filhos das periferias, e das favelas, e
alagados, e aldeias, os filhos de todos os buracos esquecidos e assolados pela
miséria, eles não têm poder de compra, ou seja, nem de escolha. Para eles, a
prisão do sistema social e econômico é ainda mais dura.
Poucos conseguem, com esforço inominável, perfurar
a dura casca do isolamento da pobreza e tocar o céu de nuvens feitas de
ciências reluzentes, mas torturantes. Estão presos assim como os mais abastados,
sob o ilusório encarecido saber.
E os que não procuram a vã vitória? Bem, fala-se de
uma geração “nem-nem” – que não trabalha, nem estuda. Os dados que atestam a
existência dessa camada de indivíduos “parados” vêm de pesquisa do IBGE, há
pouco tempo.
Um quinto dos brasileiros entre 18 e 25 anos está
no limbo. Não ingressou no mercado de trabalho muito por falta de capacitação,
uma vez que eles abandonaram as salas de aula. Mas seriam o quê nesse mercado
de trabalho? Mão-de-obra, não cabeça. E não há qualquer desejo de voltar à
escola, porque aquele espaço não lhes representa.
São 5 milhões de sujeitos experimentando a angústia
de, aos olhos do sistema e das pessoas que o reafirmam, não serem ninguém.
Quase todos pobres, embora alguns “nem-nem” sejam também de classes mais ricas,
mas talvez pelo mesmo motivo se evadiram – a prisão do estudo e do trabalho não
atrai. E, para quem já parou, fica mais difícil retornar à ciranda viciada.
Imagina-se sem esforço que os jovens ricos que “não
fazem nada” contem com maior suporte em meio à família, embora, muito
provavelmente, a cobrança e a opressão também existam, como para os outros com
menos posses.
Mas os pobres que “não fazem nada da vida” mal vida
têm! O direito de viver nem lhes foi dado. Foram obrigados, todos os dias,
durante a infância, a frequentar o ensino público... Levados a sonhar... E
quando as primeiras etapas da educação fundamental terminaram, o horizonte se
tornou mais árido. E os poucos que concluíram o Ensino Médio acabaram dobrando calças
numa fábrica de roupas.
Que vida e que futuro são esses? Não se pode
acreditar cegamente que só quem estuda vence na vida - é uma meia-verdade. Nem
quem estuda vence, na maior parte das vezes. Os que ainda relutam para se
educar sofrem com a coroa que não vem.
Quem estuda e quem trabalha não detêm na essência
qualquer valor maior que um “nem-nem”, engulam os orgulhos feridos. Não nos
esqueçamos que o conhecimento pode vir de fontes várias... E o que se encontra
nas Academias e nas conferências de doutores às vezes soa apenas como o
retumbar do ego ou de um produto caro que oferece de volta tão pouco prazer
além do tolo status.
Não vilanizo as vítimas da evasão escolar, as
jovens mães solteiras que largaram o colégio, os criminosos, os inocentes
imobilizados, os limpadores de vidro, os gritadores de bombons nos ônibus, as
pessoas que já por duas vezes me levaram celulares diferentes. Ou melhor, passada
a raiva egoísta da agressão ao meu conforto, tento não vilanizar.
Porque esperneio para me conscientizar de que esta
nossa luta não é uma luta contra carne e contra sangue, não é luta de homens
contra homens, não deveria. É uma luta contra forças que nos fazem desprezar
todo aquele que não têm dinheiro nem poder para se afirmar no mundo. Sem
liberdade para sonhar, escolher e realizar, como se vive uma vida com sentido?
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