sexta-feira, 5 de setembro de 2014

ANTENADOS



 

Nem-nem

BARBARA COSTA

Que futuro teremos num país em que praticamente nenhum poder de escolha nos é dado? Não escolhemos nossas preferências porque não temos dinheiro para pagar. E, nessa busca mesmo por dinheiro, não podemos escolher a faculdade que nos agrada, a profissão que nos cativa, a carreira que nos chama. Devemos fazer tudo em prol da grana, busca incansável. O dinheiro que compra. E comprar é possuir. Quem possui, pode. Dinheiro é poder. E é também a raiz de todos os males...

Os filhos da burguesia ascendida, e os filhos da classe média, esta que se aperta, mas sobrevive, contam com o amparo da educação – seus futuros estão garantidos! Mas é um futuro que vale a pena, no sentido de que nos permite viver e aproveitar a vida, ou esse futuro só nos deixa continuar procurando por um algo que nunca chega? E nem mesmo a busca por ele nos plenifica!

Enquanto o conhecimento e a sabedoria são prazeres da vida, movidos naturalmente pela curiosidade e agudeza da mente disposta, a educação formal é, muitas vezes, prisão, não segurança. Terminar os estudos não assegura o futuro que deveria vir instantaneamente, e valer a pena. O sucesso instantâneo não chega, e a vida que se vive depois do agora é opressora.

Já no Ensino Médio, você tem de se preparar para ingressar num curso universitário que dê perspectiva financeira satisfatória. Depois da faculdade, quando se pensou que se podia sossegar, logo aparece no caminho o leão da pós-graduação. E faz você acreditar que é preciso seguir e seguir na senda da formação infindável, caso contrário, não se será ninguém. E a crença é fruto do real, porque este é o certo na cadeia da nossa realidade: o conhecimento-compra não se esgota.

Mas é violento esse conhecimento mercadológico, que cobra de nós um pedágio duro demais. Quem colocou esse pedágio, como pedra de tropeço sobre o saber, foram os homens. Tudo aqui se torna cobrado. A única maneira de vencer o invencível é pelo dinheiro – até mesmo a educação foi leiloada.

Eis a vida da juventude, depois doutores e pós-doutores, de uma classe abastada e de uma classe intermediária. Não se tem liberdade nem autonomia, mas, dentre os males todos, pode-se dispor de ferramentas ou privilégios para se optar por aquilo que for menos pior – aquilo que garantirá poder aquisitivo. E, através do consumo, serem justificadas as existências.

Contudo, os filhos das periferias, e das favelas, e alagados, e aldeias, os filhos de todos os buracos esquecidos e assolados pela miséria, eles não têm poder de compra, ou seja, nem de escolha. Para eles, a prisão do sistema social e econômico é ainda mais dura.

Poucos conseguem, com esforço inominável, perfurar a dura casca do isolamento da pobreza e tocar o céu de nuvens feitas de ciências reluzentes, mas torturantes. Estão presos assim como os mais abastados, sob o ilusório encarecido saber.

E os que não procuram a vã vitória? Bem, fala-se de uma geração “nem-nem” – que não trabalha, nem estuda. Os dados que atestam a existência dessa camada de indivíduos “parados” vêm de pesquisa do IBGE, há pouco tempo.

Um quinto dos brasileiros entre 18 e 25 anos está no limbo. Não ingressou no mercado de trabalho muito por falta de capacitação, uma vez que eles abandonaram as salas de aula. Mas seriam o quê nesse mercado de trabalho? Mão-de-obra, não cabeça. E não há qualquer desejo de voltar à escola, porque aquele espaço não lhes representa.

São 5 milhões de sujeitos experimentando a angústia de, aos olhos do sistema e das pessoas que o reafirmam, não serem ninguém. Quase todos pobres, embora alguns “nem-nem” sejam também de classes mais ricas, mas talvez pelo mesmo motivo se evadiram – a prisão do estudo e do trabalho não atrai. E, para quem já parou, fica mais difícil retornar à ciranda viciada.

Imagina-se sem esforço que os jovens ricos que “não fazem nada” contem com maior suporte em meio à família, embora, muito provavelmente, a cobrança e a opressão também existam, como para os outros com menos posses.

Mas os pobres que “não fazem nada da vida” mal vida têm! O direito de viver nem lhes foi dado. Foram obrigados, todos os dias, durante a infância, a frequentar o ensino público... Levados a sonhar... E quando as primeiras etapas da educação fundamental terminaram, o horizonte se tornou mais árido. E os poucos que concluíram o Ensino Médio acabaram dobrando calças numa fábrica de roupas.

Que vida e que futuro são esses? Não se pode acreditar cegamente que só quem estuda vence na vida - é uma meia-verdade. Nem quem estuda vence, na maior parte das vezes. Os que ainda relutam para se educar sofrem com a coroa que não vem.

Quem estuda e quem trabalha não detêm na essência qualquer valor maior que um “nem-nem”, engulam os orgulhos feridos. Não nos esqueçamos que o conhecimento pode vir de fontes várias... E o que se encontra nas Academias e nas conferências de doutores às vezes soa apenas como o retumbar do ego ou de um produto caro que oferece de volta tão pouco prazer além do tolo status.

Não vilanizo as vítimas da evasão escolar, as jovens mães solteiras que largaram o colégio, os criminosos, os inocentes imobilizados, os limpadores de vidro, os gritadores de bombons nos ônibus, as pessoas que já por duas vezes me levaram celulares diferentes. Ou melhor, passada a raiva egoísta da agressão ao meu conforto, tento não vilanizar.

Porque esperneio para me conscientizar de que esta nossa luta não é uma luta contra carne e contra sangue, não é luta de homens contra homens, não deveria. É uma luta contra forças que nos fazem desprezar todo aquele que não têm dinheiro nem poder para se afirmar no mundo. Sem liberdade para sonhar, escolher e realizar, como se vive uma vida com sentido?

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