sábado, 18 de outubro de 2014

ANTENADOS



Estranho dia
                                                                                   BARBARA COSTA

Seu Manuel era um sujeito grave, correto e bem-asseado que enxergava sentido em tudo. Adivinhava e antevia o significado e a razão das coisas, sem nunca precisar inventá-los.
Aquele senhor vivia uma vida com sentido, não havia como negar.
Ele acordava pela manhã e sabia o significado de acordar pela manhã, rolar na cama três vezes antes de se levantar, meter-se nos chinelos macios e ir ao banheiro. 
Seu Manuel entendia o sentido do xixi matinal, do escovar os dentes, do barbear-se. Cantar, não cantava, porque aí não faria muito sentido, não teria utilidade. E como bom entendedor da vida que era, caminhava para a cozinha retendo alegremente na mente o seguinte pensamento: "O café da manhã é a refeição mais importante do dia... O café da manhã é a refeição mais importante do dia...".
Não uma vida de clichês, nem de mantras. Uma vida de exatidão. Saía para trabalhar, deixando atrás de si o apartamento onde morava sozinho, e sabia bem que rumo tomar, e sabia a razão de levar o exemplar do jornal sob a axila já levemente úmida do suor da manhã ensolarada, e sabia o sentido de existir um sol, e sabia por que usava camisa de linho de mangas cumpridas naquele calor escaldante.
 Era um homem, este seu Manuel, a quem nada surpreendia. As coisas todas estavam nos eixos, eram como as molas do seu relógio quase suíço. 
Um dia, o relógio parou. Antes de dobrar a esquina da rua de seu prédio rumo ao ponto do ônibus, seu Manuel, tão compenetrado em saber o sentido das coisas, foi ver as horas, um dia normal, normalíssimo, e o relógio - parado.
 Houve um pequeno susto. Uma palpitação. Mas nada grave. Resolveria. Exatamente ali, resolveria, e seguiria seu caminho, exato.
Tirou o relógio do punho, na intenção entender o que se passava. De repente, descoordenado e inseguro, não sabia o que fazer com o jornal sob o braço, nem com a maleta, nem com as mangas da camisa, que sufocavam. Mas teria calma. Não era tão grave.
O susto definitivo veio quando, chacoalhando o relógio contra o ouvido, sem saber supondo que assim alguma obra mágica faria com que os mecanismos da máquina do tempo voltassem a funcionar, deixou o objeto cair. Ai! Exasperado assim ao extremo, abaixou-se de joelhos na calçada, recuperar o relógio, vidro agora rachado, e deu de cara com ela: ela.
Era uma florzinha assim, miúda, murcha, amarela, finíssima, delicada como um neurônio, bordas queimadas de sol, mas resistindo. Tão magrinha, desnutrida. Flor amarela subindo do concreto, rachando já quase a calçada inteira, suave forma, fissura gigantesca a seus pés.
Ah, aquilo... Era mais do que podia suportar seu Manuel, ali no cinza morto da exatidão das horas, o coração do nosso camarada não aguentou. Abandonou o jornal no chão mesmo, quis apanhar a florzinha, mas deixou-a também, fugindo apavorado de volta para casa. O relógio igualmente perdeu-se.
 E Manuel. Trancou a porta atrás de si, já no apartamento, arfando. Deixou-se deslizar e cair sentado no chão, pernas molengas, sem entender mais nada. A mão foi à testa, suada. Era um dia mais que estranho. Uma fissura na própria vida. A poesia que nasce do espanto.

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