Estranho
dia
BARBARA COSTA
Seu Manuel era um sujeito grave, correto e bem-asseado que enxergava sentido em tudo. Adivinhava e antevia o significado e a razão das coisas, sem nunca precisar inventá-los.
Aquele
senhor vivia uma vida com sentido, não havia como negar.
Ele acordava pela manhã e sabia o significado de acordar pela manhã, rolar na cama três vezes antes de se levantar, meter-se nos chinelos macios e ir ao banheiro.
Ele acordava pela manhã e sabia o significado de acordar pela manhã, rolar na cama três vezes antes de se levantar, meter-se nos chinelos macios e ir ao banheiro.
Seu
Manuel entendia o sentido do xixi matinal, do escovar os dentes, do barbear-se.
Cantar, não cantava, porque aí não faria muito sentido, não teria
utilidade. E como bom entendedor da vida que era, caminhava para a cozinha
retendo alegremente na mente o seguinte pensamento: "O café da manhã é a
refeição mais importante do dia... O café da manhã é a refeição mais importante
do dia...".
Não uma
vida de clichês, nem de mantras. Uma vida de exatidão. Saía para trabalhar,
deixando atrás de si o apartamento onde morava sozinho, e sabia bem que rumo
tomar, e sabia a razão de levar o exemplar do jornal sob a axila já levemente
úmida do suor da manhã ensolarada, e sabia o sentido de existir um sol, e sabia
por que usava camisa de linho de mangas cumpridas naquele calor escaldante.
Era
um homem, este seu Manuel, a quem nada surpreendia. As coisas todas estavam nos
eixos, eram como as molas do seu relógio quase suíço.
Um dia, o
relógio parou. Antes de dobrar a esquina da rua de seu prédio rumo ao ponto do
ônibus, seu Manuel, tão compenetrado em saber o sentido das coisas, foi
ver as horas, um dia normal, normalíssimo, e o relógio - parado.
Houve
um pequeno susto. Uma palpitação. Mas nada grave. Resolveria. Exatamente ali,
resolveria, e seguiria seu caminho, exato.
Tirou o
relógio do punho, na intenção entender o que se passava. De repente,
descoordenado e inseguro, não sabia o que fazer com o jornal sob o braço, nem
com a maleta, nem com as mangas da camisa, que sufocavam. Mas teria calma. Não
era tão grave.
O susto
definitivo veio quando, chacoalhando o relógio contra o ouvido, sem saber
supondo que assim alguma obra mágica faria com que os mecanismos da máquina do
tempo voltassem a funcionar, deixou o objeto cair. Ai! Exasperado assim ao
extremo, abaixou-se de joelhos na calçada, recuperar o relógio, vidro agora
rachado, e deu de cara com ela: ela.
Era uma
florzinha assim, miúda, murcha, amarela, finíssima, delicada como um neurônio,
bordas queimadas de sol, mas resistindo. Tão magrinha, desnutrida. Flor amarela
subindo do concreto, rachando já quase a calçada inteira, suave forma, fissura
gigantesca a seus pés.
Ah,
aquilo... Era mais do que podia suportar seu Manuel, ali no cinza morto da
exatidão das horas, o coração do nosso camarada não aguentou. Abandonou o
jornal no chão mesmo, quis apanhar a florzinha, mas deixou-a também, fugindo
apavorado de volta para casa. O relógio igualmente perdeu-se.
E
Manuel. Trancou a porta atrás de si, já no apartamento, arfando. Deixou-se
deslizar e cair sentado no chão, pernas molengas, sem entender mais nada. A mão
foi à testa, suada. Era um dia mais que estranho. Uma fissura na própria vida.
A poesia que nasce do espanto.
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