O ouro azedou
BARBARA COSTA
Trataremos agora de um assunto muito
caro à população amapaense, e que já há algum tempo vem nos preocupando
sobremaneira, seja pela ameaça de escassez, seja pelo preço, seja pela redução
da qualidade, seja pelo que for. É o açaí, minha gente. O açaí, que veio para
ficar, que talvez tenha até mesmo chegado antes de nós e inventado toda a nossa
identidade! O açaí, este elegante frutinho que vem dominando o mundo todo, para
além dos nossos estômagos e hábitos amazônicos.
Morando em Fortaleza, lugar onde o
açaí é agora moda, mas tomado como uma espécie de vitamina ou refresco, já
presenciei de tudo. As liturgias alimentícias envolvendo o líquido por lá são
ligeiramente diferentes que as nossas daqui. Metem xarope de guaraná, granola,
banana... Me garantem que é gostoso, muito gostoso. Eu, por minha vez, só
desconfio. Sou aborígene, e, como toda boa moça da terra, estranho os hábitos
estrangeiros.
Medo mesmo eu tive quando vi, num
restaurante da Beira-Mar, um senhor e sua senhora tomarem açaí feito sopa:
mergulharam um pedação de pão na cumbuca e se refestelaram. Engoli em seco.
Chegar em casa é sempre um alívio,
porque sei que sacrilégios não serão cometidos e encontrarei todas as tradições
do açaí observadas. Açaí com tapioca, com farinha d’água, com açúcar, com
carne, com camarão, com peixe... Assim está bom.
E era um desses almoços em casa, com
toda a família reunida, alguns litros do precioso líquido, quando minha avó
anuncia, e um de meus primos ecoa: “Esse açaí tá azedo!”. Mas como, se era
novinho, tinha acabado de ser comprado?!
Exponho minha indignação à mesa e sou
informada de que, às vezes, acontece mesmo de algumas massadeiras (é assim que
se escreve?) venderem o açaí de outro dia, para não estragar, não terem
prejuízo. O alimento pode azedar mesmo quando guardado na geladeira.
Meu avô diz que tem gente que gosta
de açaí azedo, que não é lá grande mal. Mas eu estou indignada. E começo a me
preocupar muito com toda essa história.
Até onde sei, não existe uma
legislação que fiscalize mais especificamente as condições em que esse açaí é
processado e comercializado. Não sei se seria viável propor, nem que fosse como
um curioso experimento, uma espécie de “patrulha do açaí”, que andasse por aí
zelando pelo alimento em todos os pontos da cidade.
Enquanto minha ideia não vinga,
superabundam as irregularidades. São práticas comuns, por exemplo, em alguns
pontos de venda, acrescentarem trigo ao líquido, só para o negócio ficar mais
grosso, como a maioria gosta. Lenda urbana? Não sei, mas acredito real.
Há também a questão gravíssima da
retirada dos açaizeiros para a extração do palmito. Esse extrativismo se dá
normalmente de modo criminoso, porque os responsáveis, donos das fábricas de
quintal, não se preocupam com os resíduos industriais lançados de volta à natureza
e, mais impactante de tudo, não há qualquer controle de reflorestamento.
Se essas pequenas e grandes empresas
de palmito não seguem uma legislação dura, não se preocupam em replantar o que
retiraram da terra, assim, rapidamente, as palmeiras de açaí se extinguirão de
grandes áreas e estaremos em maior prejuízo.
Bem, e mesmo com trigo, com azedume,
e com toda espécie de artifício e maquiagem, ainda assim o açaí é vendido a
preço de ouro! Eu vivi para ver a época em que se comprava um litro por três
reais, algo assim. Depois aumentou para seis, depois aumentou para doze... Não
se assustem se, daqui a pouco, o povo estiver penhorando a casa na Caixa pra
ter o que comer no almoço!
Não sei se esses preços abusivos são
praticados por falta de legislação e fiscalização formais, não sei se é por
conta de um transporte do açaí desde o Estado do Pará (embora extraiamos aqui
também, no Amapá, mas provavelmente em menor quantidade), não sei se é
inflação, não sei se é simplesmente moda cobrar caro, como é moda tomá-lo agora
com pão.
De todo modo, espero que não caiamos
nessa ruína total e definitiva. Mas, como ninguém reclama, como o povo não se
amotina, o açaí então é cada vez mais retirado de nós, encarecido, arrancado,
tornado exclusivo, inacessível. Isso me preocupa muito. E a conclusão disso
tudo é que eu nem gosto de açaí! Imagina quem gosta...
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