sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

ANTENADOS





O ouro azedou

BARBARA COSTA


Trataremos agora de um assunto muito caro à população amapaense, e que já há algum tempo vem nos preocupando sobremaneira, seja pela ameaça de escassez, seja pelo preço, seja pela redução da qualidade, seja pelo que for. É o açaí, minha gente. O açaí, que veio para ficar, que talvez tenha até mesmo chegado antes de nós e inventado toda a nossa identidade! O açaí, este elegante frutinho que vem dominando o mundo todo, para além dos nossos estômagos e hábitos amazônicos.
Morando em Fortaleza, lugar onde o açaí é agora moda, mas tomado como uma espécie de vitamina ou refresco, já presenciei de tudo. As liturgias alimentícias envolvendo o líquido por lá são ligeiramente diferentes que as nossas daqui. Metem xarope de guaraná, granola, banana... Me garantem que é gostoso, muito gostoso. Eu, por minha vez, só desconfio. Sou aborígene, e, como toda boa moça da terra, estranho os hábitos estrangeiros. 
Medo mesmo eu tive quando vi, num restaurante da Beira-Mar, um senhor e sua senhora tomarem açaí feito sopa: mergulharam um pedação de pão na cumbuca e se refestelaram. Engoli em seco.
Chegar em casa é sempre um alívio, porque sei que sacrilégios não serão cometidos e encontrarei todas as tradições do açaí observadas. Açaí com tapioca, com farinha d’água, com açúcar, com carne, com camarão, com peixe... Assim está bom. 
E era um desses almoços em casa, com toda a família reunida, alguns litros do precioso líquido, quando minha avó anuncia, e um de meus primos ecoa: “Esse açaí tá azedo!”. Mas como, se era novinho, tinha acabado de ser comprado?!
Exponho minha indignação à mesa e sou informada de que, às vezes, acontece mesmo de algumas massadeiras (é assim que se escreve?) venderem o açaí de outro dia, para não estragar, não terem prejuízo. O alimento pode azedar mesmo quando guardado na geladeira. 
Meu avô diz que tem gente que gosta de açaí azedo, que não é lá grande mal. Mas eu estou indignada. E começo a me preocupar muito com toda essa história.
Até onde sei, não existe uma legislação que fiscalize mais especificamente as condições em que esse açaí é processado e comercializado. Não sei se seria viável propor, nem que fosse como um curioso experimento, uma espécie de “patrulha do açaí”, que andasse por aí zelando pelo alimento em todos os pontos da cidade. 
Enquanto minha ideia não vinga, superabundam as irregularidades. São práticas comuns, por exemplo, em alguns pontos de venda, acrescentarem trigo ao líquido, só para o negócio ficar mais grosso, como a maioria gosta. Lenda urbana? Não sei, mas acredito real.
Há também a questão gravíssima da retirada dos açaizeiros para a extração do palmito. Esse extrativismo se dá normalmente de modo criminoso, porque os responsáveis, donos das fábricas de quintal, não se preocupam com os resíduos industriais lançados de volta à natureza e, mais impactante de tudo, não há qualquer controle de reflorestamento. 
Se essas pequenas e grandes empresas de palmito não seguem uma legislação dura, não se preocupam em replantar o que retiraram da terra, assim, rapidamente, as palmeiras de açaí se extinguirão de grandes áreas e estaremos em maior prejuízo.
Bem, e mesmo com trigo, com azedume, e com toda espécie de artifício e maquiagem, ainda assim o açaí é vendido a preço de ouro! Eu vivi para ver a época em que se comprava um litro por três reais, algo assim. Depois aumentou para seis, depois aumentou para doze... Não se assustem se, daqui a pouco, o povo estiver penhorando a casa na Caixa pra ter o que comer no almoço!
Não sei se esses preços abusivos são praticados por falta de legislação e fiscalização formais, não sei se é por conta de um transporte do açaí desde o Estado do Pará (embora extraiamos aqui também, no Amapá, mas provavelmente em menor quantidade), não sei se é inflação, não sei se é simplesmente moda cobrar caro, como é moda tomá-lo agora com pão. 
De todo modo, espero que não caiamos nessa ruína total e definitiva. Mas, como ninguém reclama, como o povo não se amotina, o açaí então é cada vez mais retirado de nós, encarecido, arrancado, tornado exclusivo, inacessível. Isso me preocupa muito. E a conclusão disso tudo é que eu nem gosto de açaí! Imagina quem gosta...


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