Crack – É possível vencer o
preconceito?
Estudos publicados pela Fiocruz questionam o conceito de epidemia quando
se fala de crack no Brasil, mesmo assim o aparecimento de cracolândia nos
grandes centros urbanos fez o tema ganhar grande visibilidade na mídia. O
discurso de “combate ao crack” tem servido de pretexto para a implementação de
políticas públicas de viés repressivo e que violam direitos humanos, por fora
do que são as diretrizes do SUS para o tema. As comunidades terapêuticas
ligadas às igrejas evangélicas tem ganhado força, ferindo o caráter laico do
Estado e são apresentadas como principal alternativa política das autoridades
do país para os usuários de crack, embora movimentos de caráter antimanicomial
por todo o país questionem fortemente esta postura.
O
Rio de Janeiro tem sido pioneiro na política de criar estruturas que
representam a volta da lógica manicomial e um grande retrocesso para a reforma
psiquiátrica brasileira - construída por movimentos sociais ligados ao campo da
saúde, que há anos rompeu com a prática de encarcerar pessoas com problemas
psicológicos e consolidou práticas mais humanas em um campo de saúde mental.
O
sentido da internação compulsória também é contraditório com o que
especialistas da saúde defendem como método para recuperação de eventuais
usuários problemáticos de droga. O pesquisador da Escola Nacional de Saúde
Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e presidente da Associação
Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), Paulo Amarante, diz que 95% a 97% das
pessoas internadas contra a vontade (de forma involuntária ou compulsória),
retornam ao uso da droga. “Porque a pessoa não vai para a droga só pela droga,
ela vai para a droga por alguma necessidade interna, alguma coisa social, alguma
questão da sua estrutura familiar ou social que não dá conta do seu sofrimento,
do seu vazio, não dá conta de algo que ela precise, então ela busca a droga”,
relata.
A
internação compulsória é fruto de uma política governamental pensada para a
saúde pública em detrimento do que reivindicam os movimentos sociais ligados à
saúde mental. Enquanto o Estado movimenta-se para a implementação dessa
metodologia com os usuários de drogas em situação de rua, os investimentos em
saúde mental vem diminuindo nas últimas décadas. Membro da Associação
Brasileira de Psiquiatria, o médico Talvane de Moraes, diz que em 1993 eram 120
mil leitos e em 2011 esse número caiu para 32 mil. A queda no número de leitos
representa uma diminuição de 73,4% dos leitos, ou seja, praticamente 3 em cada
4 leitos foram fechados.
Internação Compulsória:
limpeza urbana e políticas higienizantes
O
contexto da internação compulsória agrava-se em cidades que recebem
megaeventos, é o que afirma o professor da Escola de Serviço Social da UFRJ
Eduardo Mourão Vasconcelos: “A cidade reterritorializa a pobreza, mas houve
mudanças nessa dinâmica. A partir da década de 70, a territorialização muda,
com formas mais humanizadas de tratamento. Mas é comum que as cidades
turísticas e que recebem mega eventos esportivos ou culturais adotem a limpeza
urbana e políticas higienizantes”, relata. De acordo com ele, com a rápida
chegada do crack na cidade nos últimos cinco anos, houve uma tendência de se
“apelar para a limpeza urbana” – com ações como a retirada, pela Polícia
Militar, de usuários das ruas e o encaminhamento para centros de reabilitação
compulsórios. Para Vasconcelos, entretanto, “o vazio assistencial não justifica
a internação compulsória em massa”.
No Rio de Janeiro, as políticas
voltadas aos usuários de álcool e outras drogas são executadas pelas
secretarias de Saúde e Assistência Social, em alguns casos com auxílio do
Ministério da Justiça. Para o funcionário da rede de saúde mental Henrique
Antunes, psicólogo residente em saúde coletiva na UFRJ, a internação
compulsória não representa um avanço no cuidado e reabilitação dos usuários,
principalmente quando são internados em locais isolados e de difícil acesso.
Segundo ele, a política adotada hoje tem caráter extremamente higienista além
de estar envolta em denúncias de fraude e corrupção, principalmente após o
secretário Rodrigo Bethlem ter sido flagrado em uma conversas de telefone
comprometedoras com sua esposa.
“É no mínimo estranho vermos o silêncio
da Câmara de Vereadores quando Renato Cinco propôs a instalação da CPI das
Internações Compulsórias em 2013 e não conseguiu sequer apoio de vereadores
suficientes para abrir o processo de inquérito. A verba pública hoje utilizada
para reprimir usuários de crack e moradores de rua deveria estar sendo investida
nas redes de atenção psicossocial, como prevê o Sistema Único de Saúde.”, diz o
psicólogo. Outras importantes medidas defendida pelo
profissional é o aumento de recursos para a criação de novos CAPS AD (Álcool e
outras Drogas), ampliando também os leitos temporários em Hospitais Gerais para
desintoxicação de usuários. Os Consultórios de Rua, que hoje se resumem a
apenas 5 equipes no Rio, precisam ser ampliados.
Redução
de danos
A redução de danos é outra estratégia
defendida por especialistas como política alternativa para a problemática do
crack e consiste na construção de estratégias para o cuidado do usuário capaz
de conviver com o uso de drogas, negando a abstinência total em um primeiro
momento. A redução de danos pode existir tanto nos cuidados do indivíduo
consigo mesmo - por exemplo, no uso de seringas descartáveis e uso de protetores
labiais antes de fumar cachimbos quentes -, como na relação que o trabalhador
da saúde estabelece com seu paciente.
Sobre a prática da redução de danos,
Dênis Petuco, que trabalhou com Redução de Danos na Secretaria Municipal de
Porto Alegre, afirma: “Sobretudo no Brasil, há a superação da
lógica prescritiva na redução de danos. Neste caso, a RD radicaliza sua
superação da lógica meramente instrumental, em que a RD se resume a um
catálogo, uma espécie de cardápio de técnicas para reduzir este ou aquele dano.
A RD que temos visto ser materializada no cotidiano dos serviços, pelo Brasil
afora, fala cada vez mais da superação desta lógica prescritiva. Não se trata
mais de receitar esta ou aquela técnica para este ou aquele uso de drogas, mas
de pensar junto com o usuário estratégias que façam sentido para ele”.
Petuco ainda diz que a compreensão da
atividade cada vez mais é na lógica de construir espaços radicalmente
dialógicos, nos quais se possa pensar, refletir e conversar sobre os usos de
drogas, construindo estratégias de modo horizontal com o paciente.
Frente Drogas e Direitos Humanos
A Frente Estadual Drogas e Direitos Humanos (FEDDH) é um dos espaços que
tem se destacado na mobilização de entidades e movimentos na discussão de uma
política para o crack sob a perspectiva humana e responsável, através de
campanhas e outros mecanismos de pressão política coletiva a partir da
sociedade civil é. A FEDDH é uma articulação política que envolve diferentes
atores da sociedade civil em torno do debate e de ações sobre a política de
drogas sob uma perspectiva dos direitos humanos. É um espaço aberto a quaisquer
organizações e indivíduos que queiram debater e qualificar sua análise e
atuação no tema, seja qual for o seu campo de prática ou luta: conselhos
profissionais, saúde, assistência social, direitos humanos, segurança.
A FEDDH é estadual, portanto limita-se ao Rio de Janeiro, mas há outras
Frentes Estaduais em outros estados como o Distrito Federal, Minas Gerais,
Bahia, Paraná e Paraíba. A importância delas estende-se para além da questão do
crack, mas das drogas no país de uma maneira geral. Para Alice De Marchi, que
trabalha no ONG Justiça Global e constrói a Frente no Rio de Janeiro, “O Brasil
tem investido historicamente em ações proibicionistas e manicomiais que têm
como resultado a quarta maior população carcerária do mundo (predominantemente
jovem, negra e pobre), índices altíssimos de execuções e violações decorrentes
de operações policiais militarizadas nas favelas e periferias e um fenômeno
recente chamado hipermedicalização da vida.
A guerra contra as drogas se traduz em guerra contra os pobres, e
enquanto não mudarmos essa perspectiva esse quadro permanecerá o mesmo. Daí a
importância da disseminação de espaços como essas Frentes, de modo a fortalecer
perspectivas para as políticas sobre drogas que sejam pautadas pelos direitos
humanos. A FEDDH se reúne em plenárias mensais, geralmente na última
quarta-feira do mês, conforme pode ser acompanhado na sua página no
Facebook (http://on.fb.me/1akuR3X).
.jpg)
Nenhum comentário:
Postar um comentário