sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

ANTENADOS


BARBARA COSTA

DA SOBREVIVÊNCIA NA VIDA ADULTA

Há alguns dias, conversando com uma amiga de Macapá, fiquei sabendo que ela iria se mudar para outra cidade com intenção de fazer cursinho e tentar o vestibular de medicina. Dentre os muitos desafios que adivinhava para esse recente futuro, com a perspectiva de morar sozinha, ela me confessou a dor que seria não comer mais feijão quase todo dia, porque não sabe fazer. Senti nela todo aquele ligeiro pânico de passar fome braba por falta de aptidão culinária. E garanti que ela iria sobreviver. Em todo caso, existe sempre biscoito.
Pus-me a pensar então na minha própria experiência de morar sozinha. Lá se vão cerca de três anos que divido um apartamento com primos-irmãos aqui em Fortaleza. E com o tempo você aprende muita coisa. Me sinto já quase uma grande velha sábia, e é próprio dos sábios compartilhar a vivência adquirida. Morar sozinho é o teste máximo da vida adulta. Mais do que pagar uma conta, mais do que deixar todos os objetos de metal no local indicado antes de passar pela porta giratória do banco, mais do que atravessar a rua sem ter alguém que olhe para os dois lado por você. Morar sozinho é o rito definitivo.
De repente, não existem mais tarefas fáceis e não é mais a sua mãe mandando você fazer as coisas, e sim um eu seu todo ponderado, insistente e higiênico, que briga com seu outro eu predominante, o bagunceiro, indolente e esquecido. Você passa a ser seu próprio arauto da bagunça e ao mesmo tempo o seu único redentor.
E aprende que as panelas não se lavam sozinhas. E um dia acorda com toda a louça da casa empilhada na pia, e descobre que não existe mesmo outra opção além de passar a manteiga no pão de fôrma do misto-quente com uma faca gigante de cortar carne, porque foi a única que sobrou na gaveta.
 Ah, e serão longas noites de misto-quente... E na pressa, não havendo tempo para cozinhar o almoço, lá vai você e agarra o primeiro biscoito que encontra pela frente, exatamente como eu disse à minha amiga. E prepare-se, assim, para enjoar do seu biscoito favorito. E prepare-se para o dia em que não houver biscoito algum.
E prepare-se para explorar outras ideias no fogão que não envolvam esquentar a água do miojo. Você vai queimar, empapar ou salgar o arroz, o básico arroz, antes de dominar essa arte que você nunca imaginou tão complexa. Vai pesar a mão nos temperos. Provavelmente vai descobrir que uma pitada de cominho em hipótese alguma pode ser trocada por uma colher de cominho. Não é uma escolha prudente, nem tente. E depois, traumatizado pelas especiarias, vai deixar as próximas comidas extremamente insossas.
E descobrirá cantos na cozinha impossíveis de se limpar. E o banheiro, que sempre fora o lugar mais asséptico e branquinho da casa, vai mostrar agora toda a biodiversidade que pode abrigar. E lá se vai você, com esfregão, balde, mil produtos de limpeza, meter a mão no vaso, guerreiro humilde que é, aceitando seu inevitável destino.
E as finanças? O que falar das finanças? Se você estiver por conta própria desde o começo, é provável que não tenha ido dormir um dia sequer sem se perguntar se iria durar até o fim do mês. E provavelmente abriu mão de saídas com os amigos, ou escolheu entre a janta e o almoço, abdicando de refeições ao longo da semana para poupar uma graninha e comprar aquele troço que você queria há tempos.
Se o seu dinheiro é fruto de mesada, bem, nas primeiras semanas, ou até mesmo meses, você vai ficar com a impressão de ter l'argent infinito. E sairá comprando tudo o que vir pela frente na sessão de cereal, iogurte e chocolate. Mas logo vai entender também por que a sua mãe dizia tanto "não" a você quando iam juntos ao supermercado. Depois de experimentar no caixa algumas vezes o pagamento de um milhão de reais por besteiras que não duram uma semana no estoque, você vai começar a se aventurar pela sessão da carne e, quiçá, na feira, adquirirá o talento da pechincha.
E, no final, tudo dá certo. Porque, à força das circunstâncias, você aprende, seja forçando a si mesmo ou seja mais tranquilamente. Se você conseguir não morrer nos primeiros dias, tudo ficará bem. Sempre existirão miojos, microondas, maçãs.
E, se a coisa apertar muito, basta telefonar para a mãe, a tia, a vó, e contar a triste história da roupa colorida que foi lavada com as roupas brancas e acabou tingindo a turma inteira. Você receberá de volta compaixão, mais algum sábio e elementar conselho sobre os princípios de lavanderia, mas sem julgamentos. E assim você aprende. E passa a ser, enfim, o adulto responsável por si mesmo. Com doses de irresponsabilidade, porque, afinal, não se conquista um reino inteiro em vinte anos. Mas vai dar certo! A maturidade é pessoal como um intestino: cada um no seu ritmo.

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