sexta-feira, 8 de maio de 2015

ANTENADOS

LIÇÃO DE CARPINTARIA

BARBARA AZEVEDO


Duas freiras passam em seu mistério de freira. Eu fico. Parada no trânsito, dentro do ônibus, fico. Sentada à janela, vejo-as passando. E se banham sob o sol inevitável, mas molinho da tarde, alaranjado sol, e cálido, como um carinho.  

Conforme passam as freiras, alegres e solares, me espantam. Não as entendo. São como uma máquina intrincada, embora apresentando-se em feitura rústica. São como um objeto estranho do medievo, sobrevivido lustrosamente ao tempo, mas que não sei para que serve.
E no entanto as freiras têm cabeças. Como eu. E panturrilhas, como as minhas. E pulsos fininhos como os meus. E seus cabelos estão cobertos, mas devem estar aí, devem ter cabelos, como eu.

E me pergunto, no instante em que atravessam, em seus véus tão puros, de que forma e substância são feitos os cabelos das freiras? Caóticos como os meus? Ou simples e sem complicações, serenos como um pasto, penteados por tão exatos pentes de madeira? Será que têm pentes, as freiras?

E na verdade o que meu coração busca mesmo saber é se elas sonham... Do cabelo, num instante, subo a outros átrios, quero devassá-las por inteiro.

Que é que almejam as freiras? E um futuro, será que as freiras têm futuro,  será que lhes informaram sobre isso, será que elas o aguardam e o fabricam? Será que chegam mesmo a pensar sobre ele? Será que as freiras sonham? E se sonham, com o quê?


O mistério das freirinhas me assombra com a potência de um pesadelo. Porque me asfixia pensar numa existência como essa, em que parece não haver mais nada além do agora. Um manso, tão manso deixar-se existir..., um deixar-se ser sem projetar-se para fora, à frente, sem guardar-se para viver depois, santificado carpe diem. Tenho inveja das freiras.

Esse atrevimento de existir sem nervosismo, impassibilidade insuportável que lhes atribuo, isso me fere. Por que é que elas vivem no mundo dos homens, de roupas de monja a andar nas calçadas, se não vão a lugar algum, não chegarão a nada? Para que e para onde correm as freiras, o que fazem de seus cabelos, pernas e pulsos?

Não há para mim qualquer sentido em sua existência. Porque, afinal, já são e já estão. Um enigma assombroso em sua simplicidade de móvel rústico, feito com esmero para ser simplesmente mesa inútil no mezanino, armário bom.

Torço o nariz para as freiras, incompreensão assustada, inveja ressentida, e volto meus olhos para frente, e as freiras lá fora ainda estão no exato segundo em que por mim cruzaram, esnobando liberdade, na ternura de uma tarde cristalina.

E, por fim, badalam os sinos. E me rasga a compreensão de que as freiras foram e eu fiquei. Eu, em minhas indecisões, em meu muito antecipar, em meu muito postergar, e pensar e pensar freiras, e fabricar futuros, e me guardar para o depois de amanhã, e roer as unhas até o sabugo dos dedos, eu nem me movi. Eu é que sou o inútil imóvel de madeira. Afinal, vejo as freiras. Mas as freiras não me veem.

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