O bebedouro, o reitor e o
governo - parte 2
Arley Costa
Falávamos,
durante a primeira parte deste texto, de como os problemas que ora as
universidades enfrentam não são questões pontuais, mas que se inserem em um
contexto mais amplo que relaciona o bebedouro quebrado com as ações dos
reitores, do governo e mesmo com organizações internacionais como o Banco
Mundial. Assim, agora buscaremos enxergar como a política apresentada no
documento do Banco Mundial (BM) intitulado "La enseñanza superior: las
lecciones derivadas de la experiencia" relaciona-se com os problemas do
bebedouro e a atual crise que impede o início do semestre nas universidades
federais.
Vários
elementos são relevantes no processo de análise. Um aspecto central diz
respeito ao volume de recursos que pode ser gerado pelo ensino superior. Os
interesses, como os recursos, são enormes, assim, uma mudança sugerida pelo
documento do BM é a redefinição da função do Estado. Esse deveria abrir mão de
exercer um controle direto e passar a ser um gerenciador de políticas e
fiscalizador do sistema de ensino fornecido pelas instituições privadas.
Praticamente uma reconfiguração do Estado para ser uma agência nacional de ensino
superior, como tem sido feito nos últimos anos para outros serviços que antes
eram fornecidos pelo governo como água, energia e telecomunicações. O governo
seria, então, responsável por instituir um marco político e fiscalizar o
serviço prestado pelas instituições de ensino.
Nesse
processo de mudança proposto pelo BM é necessário estabelecer mecanismos que
permitam às instituições privadas ser vistas sistematicamente como melhores e
mais eficientes do que foram até hoje. O Exame Nacional de Desempenho de
Estudantes (ENADE) é parte importante desse processo. Nos últimos anos, o
governo federal, independente do partido e do presidente, tem reduzido o
montante de recursos por aluno nas universidades federais e alavancado cada vez
mais recursos para as instituições privadas. Enquanto as universidades federais
perderam mais de 10 bilhões de reais esse ano, políticas que injetam recursos
do Estado nas instituições privadas foram ampliadas, mesmo com a crise.
Junto
com isso, os mecanismos quantitativos de avaliação das instituições de ensino
superior, que muitas particulares burlam de variadas formas, favorecem que
estas subam posições, enquanto as federais vão minguando e despencando. Assim,
avaliações como o ENADE servem para alavancar o interesse das particulares
entre os consumidores do serviço educação. O ENADE, portanto, embora o governo
negue, é um mecanismo de ordenação para que as instituições privadas possam
vender sua qualidade com lastro, um selo de qualidade fornecido pelo próprio
governo. Este, por sua vez, responsável que é pelas instituições federais, sabe
quais os problemas e demandas existentes, mas não entra com os recursos
financeiros, de infraestrutura ou pessoais para resolvê-los. Assim, é possível
identificar como a política adotada sob os ditames do BM tem a finalidade
precípua de empurrar as pessoas para o mercado das instituições privadas com
apoio de recursos do Estado.
O
governo, no afã de facilitar a utilização de recursos estatais para favorecer a
ampliação do mercado da iniciativa privada em educação, mudou, inclusive, a
nomenclatura utilizada para designar as instituições. Agora, para o governo,
não há mais instituições de ensino superior públicas e privadas, o que há são
entidades públicas, sendo que dividem-se em estatais e não estatais. Contudo,
sendo entidades públicas, ambas passam a ter a mesma condição de receber
recursos da união. Não há mais diferenças. O curioso é que no caso das públicas
não estatais (antigas privadas) estamos falando de instituições que estão sob
controle de grandes conglomerados organizados a partir de megainvestidores,
inclusive internacionais. Então, o governo federal estabelece mecanismos que
retiram recursos públicos que deveriam atender a população mais pobre e os
destina para os investidores do mercado financeiro.
Acoplado
à linha de reduzir recursos das instituições públicas e de injetá-los nas
privadas, o documento do BM sugere que as instituições públicas devem buscar
outras fontes de financiamento. Embora reconheça que em todo o mundo, o ensino superior
dependa de financiamento público, o BM indica a diversificação das fontes de
recursos. Entre as alternativas estão a cobrança de taxas, venda de serviços de
pesquisa e extensão, obtenção de recursos no mercado e, principalmente, colocar
o aluno como responsável pela manutenção dos custos. As universidades federais
passariam, então, no momento em que os mais abastados migrariam para as
particulares, a exigir que os alunos bancassem a manutenção dos serviços de
educação superior estatal. Sobre esse processo de colocar os custos da educação
superior sobre os ombros do estudante e suas famílias, voltaremos no próximo
texto. Momento em que continuaremos a entender a lógica dos interesses do
mercado financeiro sobre os problemas do bebedouro da universidade pública. Até
lá!
Nenhum comentário:
Postar um comentário