A ARTE DA COMPRA E VENDA PELAS MARGENS DOS RIOS DA AMAZÔNIA
Por Marco Antônio
Uma das personagens que me ficaram na memória de menino nascido e criado no Baixo Amazonas talvez seja a mesma dos moradores de outras cidades ribeirinhas, palcos que foram da atuação dos mascates itinerantes que realizavam um tipo peculiar de comércio em embarcações de grande ou médio porte - os chamados de regatões. Eless perambulavam pelos rios e varadouros cumprindo aquela máxima de que quem não estivesse pelado era freguês. Visto no mais das vezes como reles espertalhão, o proprietário (ou “Regatão”) era alguém que tinha posse suficiente para ter um barco a motor, no qual percorria os rios e igarapés da Amazônia trocando alimentos, utensílios e outros gêneros por produtos naturais tirados da floresta, que atingiam alto valor nos mercados das grandes cidades. Fosse à base de venda ou escambo, o resultado era sempre o ganho, em elevado percentual de lucro – em seu favor, é claro – daí o conceito negativo que desfrutavam, pois não faziam negócios para perder. Ameaçavam, assim, o poderio dos seringalistas. Por isso, os regatões eram mal vistos pela elite da sociedade extrativista, e sofriam com a marginalização e os preconceitos daí decorrentes.
Segundo o que os patrões e, mesmo, os extrativistas, afirmaram em um jornal da época, o “regatão” quase sempre é um cidadão turco ou sírio e exerce o comércio em geral: “Compra, vende, troca de tudo e com todos, mas principalmente com os seringueiros que, fugindo ao domínio dos donos de seringais, sentem também o desejo de ludibriar estes, caindo então nas garras daqueles que sugam até o ultimo produto do seu labor”.
O regatão surgiu na Amazônia no século XVI, um comerciante ambulante, que desce aos rios amazônicos em seus barcos comprando e vendendo, sendo o único a frequentar os povos que moram nas regiões ribeirinhas. Provenientes do oriente próximo chegaram a fluxo intenso ao Brasil, entre 1870 e 1913. Hábeis vendedores, eles se dedicaram ao comércio ambulante em várias regiões do País, especialmente na Amazônia, ficando conhecidos como regatões, ou seja, ambulantes que vendiam de tudo nos “barrancos dos rios”, através de embarcações entulhadas de mercadorias. O motivo de atração destes homens para a Amazônia foi, sem sombra de dúvidas, a riqueza propiciada pela atividade extrativista nesses distantes locais.
Do ponto de vista do sortimento, suas embarcações eram verdadeiros armazéns flutuantes, levando periodicamente os mais variados produtos para suprir a carência de um povo que deles dependia para se abastecer com um pouco de quase tudo. Tecidos, bebidas, ferragens, cereais, especiarias, utensílios de cerâmica e de alumínio, paneiros de farinha, sal, açúcar e até remédio para tratar de malária são alguns exemplos do que era vendido, sendo certo que na medida em que eles os traziam, vinham também buscá-los, de preferência os resultantes da atividade extrativista dos ribeirinhos, para comercializá-los com grande margem de lucro nos mercados de Belém ou Manaus. Num vaivém diário nos rios, esse tipo de comércio ganhava cada vez mais importância, porém as trocas não eram registradas pelo fisco e as transações não obedeciam a qualquer tipo de formalidade ou regulamentação.
Externo ao seringal, mas nunca distante dele, o regatão era um verdadeiro transgressor às ordens oriundas do patrão-seringalista. Um verdadeiro mascate das águas que dependia da compra de seus produtos pelos seringueiros, por mais que estes não servissem para absolutamente nada. O convencimento era feito da seguinte forma: iniciavam suas transações com um gole de cachaça e, com ela, prosseguiam até confundir a mente do infeliz caboclo, sempre se deixando negociar.
Muitos seringueiros viam, na figura do regatão, uma ilusão de falta de dependência, porque acostumados a prejuízos, o regatão representava a tábua de salvação em sua situação de servo da gleba selvagem e do sistema que o envolvia, pois ao menos conseguia, com isso, satisfazer algumas necessidades e vaidades que lhe davam a ilusão de homem livre para realizar negócios com quem melhor lhe conviesse. Por ser a região extrativista afastada da cidade, o regatão torna-se um representante da civilização, também, porque depois de fazer as negociações leva também noticias da cidade e até chega a ler jornais para manter a comunidade informada.
Mesmo com os conhecidos imprevistos da navegação fluvial e lacustre, salvo engano estes armazéns flutuantes resistiram ao tempo e continuam até hoje abastecendo as populações ribeirinhas, em especial aquelas mais afastadas dos grandes centros e sem comunicação rodoviária. Quando estas ligações por terra existem, os caminhões tomam o lugar dos regatões. É sabido que muitos “Regatões” tornaram-se prósperos empresários, acumulando fortunas graças ao inato tino comercial praticado e desenvolvido nessa atividade, o que nem de longe lhes conspurca a honra, pois se assim agiram foi terem encontrado uma brecha para garantir a sobrevivência. Dito de outra forma, “aviaram” os seringais, fornecendo a estas unidades, mercadorias a crédito.
O Regatão faz parte da cultura e do folclore da Amazônia, com sua tradição construiu um papel fundamental na vida de muita gente que habita nas margens dos rios.
No Museu Sacaca uma exposição a céu aberto que mostra ambientes amazônicos e, principalmente, os das comunidades tradicionais do Estado do Amapá, é possível comtemplar uma replica da casa do ribeirinho e também do famoso regatão. Com isso, e mais um mundo de atrações que o museu apresenta, é possível se desprender da modernidade e realizar uma viagem no cotidiano do ribeirinho, o povo simples e humilde da Amazônia.
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