'O Brasil
não é para principiantes'
Assistir aos acontecimentos políticos
em nosso país tem sido, no mínimo, uma atividade inquietante. Todos os dias o
cidadão é surpreendido com manchetes que parecem ter saído da cabeça do mais
criativo dos redatores. E isso foi publicamente dito pelo perfil social da
série americana “House of Cards” em 17 de maio de 2017: “Tá difícil competir”,
foi a mensagem postada diante da divulgação da notícia de que Michel Temer
tinha sido “grampeado” pelos irmãos Batista, da JBS, cujo áudio poderia
comprovar o aval do presidente para a compra do silêncio de Eduardo Cunha.
O teórico alemão Erich Auerbach, ao
propor uma releitura da mímese de Aristóteles nos explica que “é verossímil que
o inverossímil aconteça”, e esse é o argumento a ser utilizado em eventos
surpreendentes, capazes de serem geradores de traumas coletivos ou individuais,
como foi o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York, quando
dois aviões comerciais foram, inacreditavelmente, transformados em mísseis ao
atingir as torres gêmeas do World Trade Center.
Porém, se voltarmos ao texto de
Aristóteles, na obra “Retórica”, veremos que a lógica proposta pelo filósofo é
a de que “uma coisa é mais provável quanto maior o número de casos similares”.
E é esse o sentimento de nós, brasileiros: é tanta corrupção, tanta falcatrua,
que parece que estamos invertendo a lógica e tornando perfeitamente verossímil
e factível no Brasil que atos criminosos dignos de produções de Hollywood sejam
diariamente mostrados em nossos veículos de imprensa.
E, em um total contrassenso, como se já
não fosse ruim o bastante viver uma realidade digna de cinema, temos de ver
estampado em todos os portais de notícias uma insinuação da ex mandatária da
nação ridiculamente acusando um produtor de séries de TV de propagar fake news!
Ora, ora... Devemos então desconsiderar propostas de reflexão advindas da
criação artística como “O Mecanismo”, que se fundamenta na liberdade de
expressão de seus criadores?
Não precisa ser um especialista em Teoria
Literária para compreender a relação entre ficção e realidade, pois o aviso de
que obras ficcionais não têm compromisso com a realidade é exibido nos créditos
de todos os programas dessa natureza produzidos pela TV Globo, a emissora com
maior público em nosso país.
Voltando para a realidade verdadeira
daqueles que não vivem em uma bolha, me pergunto: quando será que os políticos
brasileiros serão capazes de perceber que a população está começando a perceber
a existência das cortinas de fumaça? Quando será que os políticos brasileiros
serão capazes de perceber que a tecnologia juntou geolocalização e
colaboratividade e está permitindo que aplicativos como Fogo Cruzado revelem
para o mundo a verdade nua e crua de um Rio de Janeiro sitiado? Com acompanhamento
em tempo real, com ocorrências registradas pelos usuários, o aplicativo
apresenta estatísticas de envergonhar os mais experientes roteiristas de
Hollywood, incapazes de conceber tamanha violência: da meia noite do dia 1º de
janeiro de 2018 até a meia noite do dia de hoje, o aplicativo contabilizou 1995
tiroteios, com 400 mortos e 310 feridos.
Tom Jobim, que tão lindamente cantou um
Rio de Janeiro que não existe mais, tinha razão: “O Brasil não é para
principiantes”. Se cuida, “House of Cards”.
João Paulo Vani é aluno de doutorado do
Programa de Pós-graduação em Letras da Unesp/São José do Rio Preto.
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