186 ANOS DA CABANAGEM
Um motim político popular amazônico
A Cabanagem foi a única rebelião regencial em que as camadas populares chegaram a tomar o poder. A revolta é conhecida por ter mobilizado a população afroindígena, mas também envolveu a elite local
Reinaldo Coelho
Neste sábado (5) é o Dia da Amazônia, uma data que deveria servir com um dia de debate e análise da situação, politica, econômica e ambiental e acima tudo que ela é um bioma e local de vida dos seus legítimos proprietários que sãos os índios, ribeirinhos, caboco e povo da floresta que aqui habitam e protegem a Amazônia pois um elo de sobrevivência mutua. Todos os que aqui habitam são amazônidas e além de direitos na exploração sustentável da riqueza para garantirem a futuras gerações alcançar as vantagens do progresso tecnológico e educacional.
A Amazônia é a maior floresta tropical do mundo e tem a maior biodiversidade do planeta. A maior parte da Amazônia está contida dentro do Brasil, com 60% da floresta. Para celebrar tanta grandiosidade foi definido o dia 5 de setembro para comemorar o Dia da Amazônia.
A Cabanagem, ou Revolta dos Cabanos, foi um desses movimentos insurrecional ocorrido na província do Grão-Pará, entre 1835 e 1840. Seu nome deriva do fato de boa parte dos insurrectos habitarem cabanas feitas de paredes de barro e teto de palha, às margens dos rios da Região Amazônica. Em janeiro de 2020, A Cabanagem, completou 186 anos e até hoje sua motivação continua firme e verdadeira: A AMAZÔNIA.
As origens do conflito estavam relacionadas ao processo histórico específico da colonização portuguesa da região. A província do Grão-Pará foi separada da capitania do Maranhão em 1774, sendo nomeados seus administradores diretamente pelo Reino Português. A Abertura dos Portos, em 1808, quando da vinda da Família Real Portuguesa, fortaleceu os comerciantes ingleses na região, que comercializavam madeiras e diversos outros produtos extraídos da Região Amazônica. Controlavam também esse comércio vários portugueses. Durante o processo de Independência, as elites locais refutaram a separação do Brasil em relação a Portugal, temerosos dos possíveis efeitos em seus negócios. Em 1824, aderiram ao governo monárquico de D. Pedro I.
ABDICAÇÃO DE D. PEDRO I |
Porém, a abdicação do Imperador, em 1831, abriu o caminho para o conflito. As elites não aceitaram as interferências administrativas realizadas pelos Governos Regenciais, reivindicando a volta de D. Pedro I. Em 1832, um levante armado impediu a posse de um governador nomeado pela Regência. Bernardo Lobo de Sousa assumiu a administração da província em 1833, utilizando de forte repressão contra os opositores a seu governo, com medidas como perseguição e deportação, o que criou um clima de tensão na região.
Somou-se a essa situação a intensa exploração a que os habitantes miseráveis da região estavam submetidos. As camadas populares apontavam os portugueses como responsáveis pela sua situação de miséria.
Nos 9 anos em que o Brasil foi governado por regentes foram os mais agitados de nossa história, época de verdadeiro caos político, principalmente pelo anseio de maior autonomia das províncias, designação antiga para os atuais estados brasileiros. Algumas tinham fortes tendências federalistas e até separatistas. A República chegou a ser proclamada, por exemplo, na Bahia (com um movimento revolucionário conhecido como Sabinada, entre 1837 e 1838) e no Rio Grande do Sul (durante a Revolução Farroupilha, entre 1835 e 1845).
A Editoria do Tribuna Amapaense, ao analisar um dos motins políticos da época do Império brasileiro, que ainda não tinha cortado totalmente as amarras com os colonizadores portugueses e principalmente por ter acontecido na Região Norte envolvendo o Grã Pará e o Amazonas, abrangendo assim toda a Amazônia daquela época. Procurou e encontrou Bosco Melem, um dos cabanos militante e defensor do movimento político, que afirma que ainda perdura e deve ser difundido, pois sua finalidade se faz necessário para a defesa da nos Amazônia Legal, a situação política não mudou...
Conversando com Bosco Melem, ele disse que o a Cabanagem teve diversas facções e elas nunca se encontraram e se entenderam.
“Era um movimento muito complexo, tinha várias facções e elas não conversavam, entre si. Mas, todas elas totalmente radicais. Uma delas queriam a independência do Grã Pará, outras de serem reconhecidas pelo governo imperial brasileiro, outras serem reconhecido por Portugal, mas como nação independente, outros serem ligados â Inglaterra”.
Bosco ressalta que existia um foco anti-cabanos localizado na cidade de Almeirim, no sul do atual Estado do Amapá. “Os motinados assumiram o poder em Almeirim, mas não conseguiram mantê-lo e houve muitas mortes e eles acabaram se tornando um polo anti-cabano. As cidades localizadas no atual território amapaense, caso da Vila de Macapá, era dominado pelo poder portugueses”.
A forte presença de portugueses na administração pública, no exército, na marinha e na vida econômica da região foi uma das motivações da revolta. Assim, a incorporação da região norte ao Brasil não se faria sem traumas. Nessa situação do poder econômico português, Bosco Melem destaca que desde de Província do Grão Pará a atual década os portugueses mantem esse poder econômico no Estado do Pará.
“Todas as padarias paraenses, empresas de ônibus e o próprio comércio eram e continuam sendo por denominados por portugueses. Eles conseguiram manter o poder econômico até hoje no Estado.”
Essa realidade política, que explodiu há 186 anos ainda continuam vivas e o povo brasileiro, os nortistas e amazônidas precisam conhece-la “O mundo e o resto do Brasil não podem continuar discutindo a Amazônia sem entender nossa realidade atual e origens históricas dos nossos problemas.”, define Bosco Melem.
Ele destaca que é importante que essa história política, um movimento de libertação econômica e política e de respeito pela realidade do povo da Amazônia deve ser retratada em um documentário, um filme epopeico ou um seriado de TV. “Deveria ser estudo a possibilidade de produzir um longa-metragem épico ou série de TV para a grande mídia e assim o Brasil e o mundo conheceriam esse importante fato da história brasileira e a realidade política econômica da Amazônia”, finaliza Bosco Melem.
COBIÇA INTERNACIONAL PELA AMAZÔNIA
Teorias geopolíticas registram, desde o século 16, uma permanente cobiça internacional sobre a Amazônia, a maior fronteira de recursos naturais do planeta, quase do tamanho do território dos EUA, se considerada toda a Amazônia latino-americana (da qual o Brasil representa mais do que dois terços).
No século 19, porém, a Inglaterra, a nação mais poderosa de então, com uma das mais eficientes marinhas de todos os tempos, teve a possibilidade real de se apossar da Amazônia. Bastaria se aproveitar de um pedido feito sigilosamente, em dezembro de 1835, pelo representante do governo imperial brasileiro, o regente Diogo Antônio Feijó. Ele autorizou que tropas britânicas (e também portuguesas e francesas) invadissem o Pará, atendendo a seu próprio chamado, e dessem combate aos rebeldes.
Se seu plano fosse aceito, estrangeiros poderiam matar cidadãos brasileiros em pleno território brasileiro, com conhecimento e aprovação do governo nacional. Onze meses antes, os nativos haviam desencadeado um motim, que ficou conhecido como Cabanagem, o mais sangrento de toda a história brasileira (no curso do qual, em cinco anos, segundo alguns registros historiográficos, de 15% a 20% da população regional morreu, o que seria equivalente, hoje, a dois milhões de mortos).
Regente Feijó |
O encontro secreto entre Feijó e os embaixadores inglês e francês só foi revelado 160 anos depois, quando o antropólogo inglês David Cleary, então com 42 anos, autor de uma elogiada pesquisa sobre os garimpos de ouro da Amazônia, encontrou, no Publics Records Office, em Londres, correspondência travada, de 1835 a 1839, entre a embaixada, o ministério das relações exteriores e o almirantado britânico.
Cleary publicou um artigo a respeito nos Estados Unidos, não traduzido para o português. A documentação, ainda inédita, aguarda, há mais de dois anos, a publicação prometida pela direção do Arquivo Público do Pará, para o qual o pesquisador enviou o material, em microfilme. Essa talvez seja a maior revelação recente da história brasileira, mudando ou anulando muita coisa do que se pensava, particularmente sobre o primeiro império brasileiro e a mais sangrenta insurreição popular do período, que antecedeu de quatro décadas a Comuna de Paris, de 1871.
Era o dia 17 de dezembro de 1835. Os embaixadores da Inglaterra e da França, Fox e Pontois, chegaram à sede do governo brasileiro, no Rio de Janeiro, para uma audiência “secreta e confidencial” convocada por Diogo Antônio Feijó, que governava o Brasil como regente, em nome de d. Pedro II, ainda sem idade para assumir a administração do império depois da renúncia de seu pai, d. Pedro I.
Feijó comunicou aos dois embaixadores que esperava reunir no Pará, até abril do ano seguinte, uma força de aproximadamente três mil homens para retomar o controle da capital e das áreas próximas a Belém, em poder de rebeldes. Eles haviam desencadeado um sangrento motim em janeiro daquele ano, destituindo as autoridades legais, assumindo o poder e iniciando uma perseguição a cidadãos portugueses, sobretudo os comerciantes, ainda os donos do poder local. Feijó repetiu-lhes o que já havia pedido, em outro encontro secreto anterior, ao embaixador de Portugal, de cujo jugo colonial o Brasil se havia livrado apenas 13 anos antes: que mandassem de 300 a 400 soldados de seus países para participar do ataque aos amotinados cabanos, como os paraenses eram conhecidos.
Essas tropas estrangeiras seriam embarcadas em navios de guerra dos três países e chegariam a Belém “como que por acaso”, recebendo autorização para permanecer em território nacional. Seriam mantidas de prontidão “para cooperar com as tropas brasileiras, a pedido e a critério das autoridades brasileiras em comando”. Essa “cooperação” se faria “pelos interesses gerais da humanidade e da civilização, e também pelo objetivo específico de proteger nossos respectivos conterrâneos e restituir a eles a posse de suas residências e bens”. Mas o regente do império fazia uma ressalva: teria que ser omitido “o fato de as medidas terem sido tomadas a pedido do governo brasileiro”.
Ministro das Relações Exteriores da Inglaterra, Lorde Palmerston |
Henry Stephen Fox, embaixador da Inglaterra no Império |
Os dois embaixadores se comprometeram a transmitir imediatamente o pedido aos seus respectivos governos. Na carta que enviou ao ministro das relações exteriores da Inglaterra, Lorde Palmerston (que em seguida viria a ser primeiro-ministro), Henry Stephen Fox informou, porém, ter desde logo alertado o governante brasileiro que não acreditava no sucesso da iniciativa, “a não ser que o comunicado nos fosse feito por escrito”. Só assim seria possível avaliar o alcance da “cooperação” requerida, assim como “justificar tal cooperação no caso de ela ser concretizada, e posteriormente merecer objeções por qualquer parte do Brasil”.
Segundo o embaixador, o regente respondeu-lhe “que como a Constituição do Império proíbe terminantemente a admissão de tropas estrangeiras no território do Brasil sem o consentimento da Assembleia Geral (que não poderá mais ser obtida a tempo), lhe é impossível formular sua proposta por escrito, e que, ademais, seria motivo de descrédito para o governo se fosse divulgado oficialmente o fato de que, sem ajuda externa, ele não é capaz de derrotar um punhado de insurgentes miseráveis”. Assim, Feijó não podia ir além de uma solicitação verbal em caráter secreto, “deixando a cargo de nossos governantes basear nisso as instruções que lhe pareçam convenientes aos comandantes de suas respectivas forças navais”.
Ao transmitir o conteúdo da conversa reservada, o embaixador inglês, mesmo não podendo “deixar de transmitir o comunicado” ao seu superior, não via “a menor possibilidade de o governo de Sua Majestade ou o governo francês anuírem com os desejos do regente, ou consentirem em ordenar uma operação militar, com base em um pedido formulado de maneira tão imprecisa e informal”.
Regente Feijó, manteve encontro secreto com embaixadores inglês e francês |
Como o próprio Feijó admitira, acrescentou o diplomata na correspondência, sua proposta “viola diretamente as leis e a Constituição do país; e, é claro, seria desmentida de imediato, e a culpa pela intervenção não autorizada seria atribuída às potências estrangeiras, se isso fosse visto como conveniente”.
Fox observa ainda: “não penso que exista a menor probabilidade de que o governo brasileiro consiga, nem agora nem em qualquer momento, reunir uma força regular tão grande quanto aquela que o regente afirmou contar”.
Finaliza a correspondência com uma última advertência: “O emprego, no Pará, de uma força inglesa e francesa, em conjunto com uma portuguesa, tornaria o procedimento ainda mais questionável, levando em conta o ciúme que ainda existe neste país com relação à influência e aos desígnios de Portugal”.
Respondendo à consulta, em 9 de maio de 1836, Lorde Palmerston informou o encarregado dos negócios na embaixada no Rio de Janeiro, W. G. Ouseley, que o governo inglês havia dado “a mais atenciosa consideração à sugestão feita” por Feijó, mas não se sentia “à vontade” para cumprir esses desejos.
Em primeiro lugar, porque seria “uma divergência dos princípios gerais que regem a conduta do governo britânico, em relação aos países estrangeiros, interferir tão diretamente nos assuntos internos do Brasil”. Palmerston considerava “inadequado para a dignidade deste país fazer uma demonstração, sem estar preparado, se fracassada fosse, para acompanhá-la pela força: e o Governo de Sua Majestade não acreditava justificável se envolver em operações em terra pelo interior da Província do Pará, com o objetivo de apoiar a autoridade do Governo do Rio de Janeiro contra a população do distrito”.
Mas ainda que não houvesse “objeções insuperáveis a esse tipo de procedimento”, o chanceler inglês lembrava que a constituição brasileira “expressamente proíbe a penetração de tropas estrangeiras em território brasileiro sem o consentimento do Poder Legislativo”.
Mesmo descartando o pedido, o governo britânico se sentia “altamente gratificado pela confiança por parte do Regente, da qual a sugestão dele produz uma prova inequívoca, e que o Governo de Sua Majestade sinceramente espera que as medidas inteligentes e enérgicas adotadas pelo Regente, para a pacificação do Pará, cheguem a um bom êxito para restaurar a paz e a ordem naquela importante Província”.
Em abril de 1836, a tropa imperial brasileira e uma esquadra britânica realmente se encontraram no Pará, mas não da maneira pretendida por Feijó. Três navios de guerra foram deslocados de Barbados para Belém, pelo Comando Supremo das Índias Ocidentais, com a missão de exigir a prisão dos assassinos da tripulação de um navio mercante inglês, que fora pilhado cinco meses antes no litoral paraense.
O capitão Charles Strong encontrou uma província em pânico pelos violentos combates travados entre as tropas imperiais e os rebeldes, que continuavam de posse da capital. Mas ele foi recebido em Belém “de forma muito melhor do que esperava”. O presidente mandado pelo Rio de Janeiro, almirante Manuel Jorge Rodrigues, confinado numa ilha próxima, havia alertado Strong que “se eu atracasse, seria assassinado”. Mas o presidente cabano, o jovem Eduardo Angelim, terceiro no posto desde o início da revolta, disse-lhe que só não fora cumprimentá-lo a bordo do próprio navio inglês porque “o povo não permitiria que ele o fizesse”.
Após esse contato, Strong manifestou ao almirantado sua admiração de que “os brasileiros não viessem tomar a cidade, o que certamente os botes da minha esquadra teriam feito, se necessário, em meia hora, mas o nome de Eduardo (um mero rapaz) parecia fazer um terrível efeito, e não vimos além de cento e cinquenta homens armados e estes em estado deplorável”. Em outra correspondência, garantiu que “podíamos facilmente ter desembarcado 220 homens, incluindo fuzileiros com pequenas armas”, e tomado Belém dos rebeldes. Mas preferiu manter-se como observador.
Na busca da indenização para os prejuízos materiais e na reparação dos crimes cometidos contra o brigue Clio, o oficial inglês enfrentou mais resistência na autoridade legal. Angelim, que louvou “a suavidade dos modos” de Strong, reforçando a “amizade que a nação inglesa consagra ao Pará”, eximiu-se de responsabilidade, “pois o Pará não existe desmembrado do império”. Deixava claro que não havia nenhum propósito separatista no movimento sob sua liderança, ao contrário do que caracterizava a Farroupilha, rebelião que eclodiu simultaneamente no outro extremo do país, no Rio Grande do Sul (então província de São Pedro), ameaçando a unidade territorial do nascente império.
A Cabanagem foi reprimida a ferro e fogo a partir do momento em que os rebeldes abandonaram Belém. O historiador Arthur Cezar Ferreira Reis, uma das fontes mais respeitadas sobre a região, calcula que 20% dos 150 mil habitantes da Amazônia naquela época foram mortos, pelos rebeldes ou – e principalmente – pelas tropas imperiais, no período de “pacificação”.
A documentação inédita revela que a Inglaterra em nenhum momento tentou se apossar da Amazônia, transformando-a em possessão colonial britânica, como havia feito na Ásia e na África. Os navios da esquadra foram deslocados de Barbados para investigar se naquele lugar estratégico poderia estar se repetindo um motim semelhante ao de Santo Domingo, escravos e índios se unindo para se libertar do grande inimigo comum, “pondo fim ao mundo criado pelos brancos”.
Para a Inglaterra, naquelas paragens o representante desse mundo era o governo brasileiro, que confirmara todos os compromissos herdados da administração portuguesa. “Se a revolução [cabana] não for agora sufocada, a extensa e fértil província do Pará poderá ser considerada como perdida para o mundo civilizado”, assinalou o embaixador Fox para Lorde Palmerston. Mas isso não aconteceria: os índios e negros amazônicos “eram muito menos avançados em relação à civilização do que os negros de São Domingos foram, quando eles por primeiro se tornaram livres”. A pérfida Albion não tinha o que temer.
A nova documentação sepulta especulações com a aparência de verdades históricas feitas até agora. Como a de Carlos Rocque, autor de Cabanagem – Epopéia de um Povo, um dos mais recentes livros de uma bibliografia perturbadoramente reduzida sobre o tema. Segundo Rocque, Eduardo Angelim, “quando Presidente, recebeu tentadora proposta de um capitão inglês, para proclamar a independência do Pará, no que teria o apoio de potências estrangeiras. E o caudilho negou-se até a discutir a sugestão”.
Nenhuma documentação acompanha a afirmativa, mas ela é repetida em quase todos os livros acatados como referência. Pasquale di Paolo diz, em Cabanagem – A Revolução Popular da Amazônia, que o capitão inglês propôs ao presidente cabano a “declaração de independência da Amazônia”. Gustavo Moraes Rego Reis registrou, em A Cabanagem, que os ingleses “sugeriram e ofereceram proteção à província, caso fosse proclamada a separação política do Império”. Quando o próprio Angelim morreu, em 1882, o jornal Diário do Grão Pará registrou que o maior dos líderes cabanos havia recusado “recursos militares do governo Americano para proclamar a independência da Amazônia”.
O mito prevaleceu durante tantos anos porque os historiadores não se lançaram adequadamente na busca da verdade e porque foi interessante cultivar uma versão heroica, observa Cleary na entrevista que me concedeu.
Doutor em antropologia por Oxford e professor visitante do Departamento de História da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, até assumir uma diretoria da ONG ambientalista TNC (The Nature Conservancy) em Brasília, no ano passado, Cleary já publicou um livro em português: A Garimpagem de Ouro no Brasil: Uma Abordagem Antropológica (Editora da UFRJ, 1990).
COMO TUDO ACONTECEU
Era noite de festa de Reis no Brasil Império e o povo de Belém festejava ao luar. Autoridades portuguesas e famílias poderosas brindavam na noite de gala do Teatro da Providência. Do lado de fora, estava armado o palco de uma guerra anunciada. No dia 6 de janeiro de 1835, aproveitando a distração geral pela data santa, mais de 1.000 guerrilheiros empunhando espingardas, mosquetões, foices, terçados e espadas se escondiam nas matas ao redor da cidade, cortada por igarapés. Moradores de Belém misturavam-se a combatentes vindos do interior. Chegaram à capital no começo do ano e já planejavam o ataque.
À saída do teatro, o presidente da província, Bernardo Lobo de Souza, foi para a casa da amante. Demorou a perceber o caos na cidade. Esgueirando-se pelos quintais, de casa em casa, conseguiu ficar escondido até o início do outro dia. Quando saiu à rua, foi morto à bala por um índio tapuio. Caiu em frente ao palácio do governo, tomado pelos cabanos durante a madrugada. Comerciantes, fazendeiros e intelectuais apartados das decisões na província lideraram a ofensiva dos tapuios (índios que abandonaram suas tribos), negros escravos e libertos, mamelucos, cafuzos, mulatos, mestiços e também brancos. Entre tantas origens diferentes da massa que surpreendeu os soldados aliados à Regência, uma característica comum batizou a revolta. Muito pobres e explorados na economia extrativista da região, os rebeldes moravam em cabanas simples de barro, cobertas de palha.
A Cabanagem (1835-40) combateu o domínio do Império e da elite portuguesa local, acostumada aos privilégios coloniais. A população buscava melhores condições de vida e reclamava da tirania do governo do Grão-Pará, imposto pelo poder central no Rio de Janeiro. Não foi difícil para um grupo de proprietários e religiosos cooptar os mais necessitados sob a bandeira da luta pela autonomia da província. Mais próxima de Lisboa do que do Sudeste, Belém resistiu a aderir ao Brasil independente. Não aceitava as ordens vindas da nova capital do Império, o Rio. A instabilidade política se arrastava havia vários anos.
A revolta estourou depois da morte do cônego João Batista Campos. Ameaçado após sucessivas brigas públicas com Bernardo Lobo de Souza, ele fugiu da cidade no fim de 1834. Uma infecção no rosto provocada por um acidente com uma lâmina de barbear matou o religioso enquanto ele estava foragido. Para os cabanos, a culpa era do presidente.
Há quem compare a tomada do palácio do governo pelos cabanos à Queda da Bastilha, marco da Revolução Francesa na Paris de 1789. Era grande a presença de estrangeiros na região. A França costumava exilar prisioneiros contrários ao regime vigente na vizinha Guiana Francesa. No livro A Miserável Revolução das Classes Infames, o historiador Décio Freitas relata o testemunho de Jean-Jacques Berthier, um exilado francês que vai a Belém e se une ao movimento. "Na época havia, sim, um temor do Império quanto à aproximação das camadas populares, principalmente dos escravos e índios, com os franceses. Mas a Revolução Francesa saiu vitoriosa, enquanto o triunfo da Cabanagem está mais na memória", diz Eliana Ferreira, historiadora e pesquisadora na Universidade Federal do Pará.
A violenta revolta da Cabanagem Reprodução
A partir de Belém, os rebeldes conseguiram manter o controle da província por pouco mais de um ano. Intrigas e traições entre os líderes causaram tanto prejuízo quanto as tropas inimigas. O governo cabano nasceu de uma culminância de movimentos formados ao longo dos anos anteriores. Os vários setores que se juntaram ao levante fizeram sua força, mas não demorou para que as divergências aparecessem.
O primeiro presidente indicado, Félix Malcher, simpático ao Império, foi chamado de traidor e assassinado em meio à disputa de poder com o comandante de armas, Antônio Vinagre. O cadáver foi arrastado pelas ruas, a exemplo do que acontecera com Bernardo Lobo de Souza. Antes de completar 45 dias o governo cabano já tinha um novo chefe: Francisco Vinagre, irmão de Antônio.
Ao todo, três líderes rebeldes presidiram a província. Já na primeira gestão, uma moeda antiga passou a ser reutilizada e só valia no estado. Cabanos se apropriaram de casas de famílias portuguesas ou ligadas ao antigo regime. "Em algumas fazendas, castigaram os senhores com as mesmas torturas que haviam sofrido antes. O porte de arma foi legalizado, o que dava aos cabanos a sensação de realmente pertencerem à cidade. Isso tudo representava uma grande mudança no cotidiano", diz Ferreira. Mas em nenhum momento eles conseguiram consenso em torno de um projeto viável de governo.
CAOS
A situação de Belém foi se tornando deplorável. Destruída pelos combates, enfrentou epidemias de varíola, cólera e beribéri. A população passava fome. A cidade ficou cercada por escunas e fragatas ligadas ao Império, onde se instalaram políticos e militares foragidos. O primeiro contra-ataque provocou a fuga dos cabanos para o interior. A ofensiva teve a ajuda do presidente Francisco Vinagre, em outro exemplo dos interesses contraditórios dentro do movimento. Os rebeldes resistiram sob o comando do irmão dele e de Eduardo Angelim. Em pouco tempo eles retomaram a capital e, aos 21 anos, Angelim assumiu o poder. Último presidente cabano, foi derrotado nove meses depois pela poderosa esquadra do brigadeiro Francisco José Soares de Andrea.
Angelim fugiu novamente da cidade, mas foi capturado e deportado. A violenta caça aos cabanos pela Amazônia prosseguiu até 1840. "Nesse período, a Cabanagem continua de forma que ainda não se sabe ao certo. Havia fortes lideranças em cidades como Vigia e Santarém, mas os estudos precisam ser aprofundados", afirma Ferreira. Mais de 30 mil rebeldes foram executados, um terço dos habitantes da província. A tortura era comum. Militares exibiam colares feitos com orelhas secas de cabanos.
A revolta foi o mais bem-sucedido levante popular do Brasil Reprodução
No fim da revolta, Belém só tinha mulheres, crianças e idosos. A participação feminina nas conspirações e combates é foco de estudos recentes. Muitas mulheres foram atacadas e violentadas, do lado cabano e das famílias ligadas à Regência. Não há provas de que elas tenham participado das frentes de batalha, mas é certo que atuaram nos bastidores. "Um dos exemplos é a dona Bárbara, uma viúva de militar que foi até a corveta Defensora munida de moedas de ouro. O navio abrigava presos políticos." Eliana Ferreira sugere que ela tenha tentado comprar a liberdade de rebeldes. Parte do trabalho de troca de informações e suprimento de comida para os cabanos era feita por mulheres.
Mesmo sangrenta, a Cabanagem (1835-40) foi o mais bem-sucedido levante popular brasileiro.
VINTE ANOS DE LUTA
Os antecedentes e os marcos da revolta
Em 1823, os mercenários de Dom Pedro I forçaram a adesão do Pará ao Império - e 256 presos políticos são sufocados com cal. A instabilidade política continuava dez anos depois, e Bernardo Lobo de Souza assumiu a presidência local e perseguiu os rebeldes. Um ano depois morreu Batista Campos, um dos líderes da resistência que estava foragido, depois vários grupos se juntaram para reagir. No dia 7 de janeiro de 1835 os cabanos tomaram o poder, mataram Souza e libertaram Félix Malcher. O fazendeiro é indicado presidente.
No dia 21 de fevereiro de 1835, Malcher evitou confrontar o Império. Foi Chamado de traidor e assassinado. Foi assim que Vinagre assumiu. No dia 26 do mês seguinte o sucessor de Malcher, Francisco Vinagre, alia-se ao Império e renuncia à presidência. Os líderes fogem para o interior. No dia 23 de agosto cabanos retomaram Belém. Eduardo Angelim se tornou o novo presidente e a cidade continuou sofrendo cada vez mais com a guerra.
Eduardo Angelim Wikimedia Commons
No dia 13 de maio de 1836, a esquadra do brigadeiro Francisco Andrea obrigou os cabanos a fugirem. Angelim foi preso em outubro. Só em novembro de 1839 é decretado o fim da guerra civil e os foragidos foram anistiados, mas a caça sangrenta continuou até 1840.
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