segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Oportunidade desperdiçada

 Oportunidade desperdiçada 

José Eustáquio Diniz Alves, um dos maiores especialistas em demografia do Brasil, diz que o país está deixando passar a chance de se preparar para as consequências econômicas do envelhecimento da população  

 

O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, de 67 anos, foi professor da Universidade Federal de Ouro Preto e da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Em abril de 2019, ele se aposentou, mas segue empenhado na observação dos fenômenos relacionados ao crescimento populacional do Brasil. Acostumado a enxergar a demografia como um navio transatlântico, que corrige as rotas lentamente, o professor agora se debruça sobre os desvios proporcionados pela pandemia. Ele diz que as mortes causadas pelo coronavírus farão com que a expectativa de vida dos brasileiros sofra uma queda pela primeira vez em mais de cem anos – o tombo será de um a dois anos, calcula, apostando que em 2022 seja finalmente restabelecido o patamar de antes da tragédia. 


Outros indicadores, porém, preocupam mais e merecem maior atenção. Especialmente aqueles com reflexos diretos no desempenho da economia. É o caso, por exemplo, da queda na taxa de fecundidade, que desde 2005 não alcança o mínimo necessário para a reposição populacional. A consequência disso é que, na segunda metade do século XXI, o país terá 50 milhões de pessoas a menos. Diante dessa tendência, Alves afirma que é necessário elevar a produtividade dos brasileiros, investindo em capital humano para tornar a mão de obra nacional mais qualificada. Só que, até agora, estamos deixando uma janela de oportunidade passar. “O Brasil vive atualmente o seu melhor momento demográfico, mas tem a sua menor taxa de ocupação. Há 30 milhões de pessoas desempregadas ou subutilizadas. China e Vietnã só venceram a pobreza porque conseguiram ter 60% da população empregada.” 


Eis a entrevista: 


A pandemia de coronavírus vai alterar a expectativa de vida do brasileiro? 
Pela primeira vez, em mais de um século, teremos uma redução na esperança de vida do brasileiro. Antes da pandemia, a expectativa de vida que uma pessoa tinha ao nascer no país era de 76,6 anos, segundo o IBGE. Esse número deve ter caído em um ou dois anos em 2020. No Brasil, em geral, morrem 1,4 milhão de pessoas por ano. Em 2020, só de Covid-19, foram cerca de 200 mil vidas perdidas. Mas há também aqueles que morreram de síndrome respiratória aguda grave (SRAG). Com a lotação dos hospitais, sabemos também que muita gente morreu em casa, de outras doenças. Todos esses dados ainda precisam ser computados para que tenhamos uma noção exata de qual foi a expectativa de vida ao nascer em 2020. 


Alguma previsão para 2021? 


Começamos o ano de maneira terrível. Em janeiro, tivemos 30 mil mortes no Brasil por Covid. Apesar de a vacinação ter começado, vai demorar para imunizar a maioria da população. Nos primeiros cinco meses de 2021, pelos meus cálculos, teremos outros 100 mil mortos no país por coronavírus e há grande probabilidade de repetirmos os 200 mil óbitos por Covid-19 em 2021. Em 2022, talvez a situação volte ao normal, com a expectativa de vida voltando ao patamar de 2019. Como a maior parte dos que morreram são idosos, pessoas que estavam no topo da pirâmide populacional, a esperança de vida pode se recuperar mais rapidamente. Será algo parecido, embora mais grave, com o que aconteceu no Japão após o tsunami de Fukushima, em 2011. Naquele ano, a expectativa de vida caiu um pouquinho, cerca de 0,3 ano. No ano seguinte, voltou a crescer. 


      Arquivo pessoal   

“Teremos uma redução na esperança de vida do brasileiro” 



Há algum precedente similar na história recente do Brasil? 


Em nenhum momento do século XX isso aconteceu. A cada década, o brasileiro acrescentava três anos à expectativa de vida. Agora teremos uma reversão. No mundo é a mesma coisa. Ao longo de 200 mil anos da história humana, a esperança de vida sempre foi muito baixa, em torno de 25 anos. É uma média. É claro que muitos chegavam aos 80 anos, mas como a mortalidade infantil era muito alta, o valor final era baixo. Na segunda metade do século XIX, a expectativa de vida começou a subir. A alimentação melhorou. O saneamento básico também contribuiu bastante para uma melhora do quadro, pois reduziu a mortalidade de crianças. Os avanços científicos que aconteceram em seguida foram ainda mais marcantes. No século XX, a expectativa de vida dobrou. Era de 30 anos no início do século e passou para 66 anos no final. Foi um ganho fantástico. Essa tendência não será alterada, apesar da pandemia. A demografia, afinal, é como um transatlântico, que se move sem curvas bruscas. No final do século XXI, a expectativa de vida poderá chegar a 80 anos.   


A pandemia terá efeitos na distribuição da população entre as cidades brasileiras? 


Muitos migrantes, principalmente nordestinos, que viviam em cidades grandes do Sudeste retornaram para suas cidades. Eram pessoas de baixa renda, que trabalhavam no setor de serviços, como bares e restaurantes. Quando a economia parou, eles perderam renda. De uma hora para outra, ficaram sem condição de se manter em cidades caras. Depois que a crise passar, não há como saber o que essa população irá fazer. Muito vai depender de qual região crescerá mais rápido, se o Sudeste ou o Nordeste. Além disso, a pandemia reforçou um movimento que já vinha acontecendo, que é o dos aposentados. Muitos idosos que tinham alguma renda e não precisavam trabalhar no escritório presencialmente, todos os dias, optaram por morar em lugares com qualidade de vida. Muitos paulistanos se mudaram para Florianópolis. A pandemia deu mais força a esse fluxo. Com o home office, as compras pela internet e as reuniões remotas por aplicativos, muita gente descobriu que poderia viver em outros municípios, sem se preocupar tanto com a violência e os problemas da cidade grande. 


As grandes cidades tendem a perder importância? 


Elas continuarão sendo atraentes porque oferecem muitas vantagens. Têm melhores universidades, um sistema de saúde de qualidade e oportunidades de emprego. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que as cidades pequenas também têm seus problemas. Muitas têm registrado um aumento na criminalidade. Nos últimos anos, o principal movimento que temos observado no Brasil é o aumento na população das cidades médias. O núcleo das grandes cidades não tem crescido, mas os municípios que ficam nas regiões metropolitanas têm tido uma elevação na população. Isso deve continuar. 


Que impacto a pandemia terá nas taxas de fecundidade? As pessoas continuam tendo filhos como antes? 


No começo da pandemia, teve gente dizendo que haveria uma grande elevação no número de bebês porque as pessoas ficariam presas em casa. Sem poder sair, elas acabariam fazendo sexo e tendo filhos. Acontece que essa relação entre sexo e reprodução não existe em países de renda média e alta. As pessoas têm acesso a métodos contraceptivos. Em geral, ninguém vai querer colocar um filho no mundo em uma situação de incerteza, de desemprego, com a economia em crise, mudança climática e problemas ambientais. Nos Estados Unidos e na China, já saíram estudos dizendo que a taxa de fecundidade, que mede o número de filhos por mulher, deve registrar um tombo violento em 2020. A mesma coisa deve acontecer em países europeus, em alguns asiáticos e no Brasil. O portal da Transparência do Registro Civil mostra 2,6 milhões de nascimentos no Brasil em 2020, uma queda em relação aos 2,78 milhões de 2019. Esses dados não são definitivos, porque há registros tardios, mas indicam uma baixa. No mês passado, foram registrados 208 mil nascimentos, o que é menos do que os 244 mil de janeiro de 2020. Será uma redução anual em torno de 5%, parecida com o que tivemos durante o auge do zika vírus em 2016. Naquele ano, muitos casais preferiram não ter filhos porque tinham medo de que o bebê pudesse nascer com problemas. 


“Devemos ter, de forma planejada, um decréscimo da população e da economia ao longo deste século” 


Essa redução da taxa de fecundidade já estava acontecendo, não? 


Sim. Será mais um fator que a pandemia deve reforçar. Para que uma população se mantenha estável, cada mulher precisa ter 2,1 filhos, em média. Desde 2005, a taxa de fecundidade do Brasil está abaixo disso. Em primeiro lugar, aprendemos que não era mais necessário ter tantos filhos para continuarmos existindo como sociedade, porque a mortalidade infantil caiu bastante. Minha mãe, por exemplo, ficou grávida 15 vezes. Tratava-se de algo comum, que hoje é difícil de entender. Em segundo lugar, o Brasil se urbanizou. No campo, as crianças ajudam a cuidar das galinhas, da horta, consomem pouco e acham que não é preciso gastar com escola. Em uma situação como essa, quanto mais filhos uma pessoa tiver, melhor. Como elas ajudam os adultos, é como se a renda fosse transferida para os mais velhos. Na cidade, tudo muda. É preciso dar uma educação melhor a elas e há um avanço do padrão de consumo. O fluxo de riqueza, então, passa para as gerações mais novas. No mundo todo, sempre que isso aconteceu, a fecundidade caiu. 


A diminuição no número de nascimentos é um problema para o país? 


Defendo que devemos ter, de forma planejada, um decréscimo da população e da economia ao longo deste século. Tenho uma visão muito crítica do impacto humano sobre o meio ambiente. Estamos indo para um colapso. Além de enfrentarmos uma emergência sanitária, por causa do coronavírus, também estamos em uma emergência climática e ambiental. Acho fundamental uma diminuição da população e da economia para reduzir aquilo que se chama de “pegada ecológica” da economia internacional. Na segunda metade deste século, a população brasileira vai cair de 230 milhões de pessoas para 180 milhões, uma diferença de 50 milhões. A China vai ter uma diminuição ainda maior: serão 400 milhões de indivíduos a menos, o que representa duas vezes a população atual do Brasil. Apenas os países com menos pessoas vão conseguir sobreviver ao caos ecológico que se avizinha no horizonte com o aquecimento global e a perda de biodiversidade. 


E como ficará a economia desses países, com menos gente trabalhando? 


Há maneiras de lidar com isso. No início da década de 1970, a China adotou uma política demográfica democrática chamada Wan, Xi, Shao, que incentivava as mulheres a terem o primeiro filho em idades mais avançadas, mantendo um espaçamento maior entre eles e limitando o tamanho da prole. Nas reformas de Deng Xiaoping, de 1979, foi adotada uma perspectiva autoritária com a política de filho único. O resultado foi que a taxa de fecundidade caiu de seis filhos por mulher para menos de dois, abaixo do nível de reposição. Foi uma atitude extrema, mas uma estratégia pensada para reduzir a base da pirâmide populacional e possibilitar o aproveitamento do bônus demográfico — quando o percentual de pessoas em idade ativa está em seu melhor momento para garantir a decolagem do desenvolvimento humano. O resultado é que a China retirou 1 bilhão de pessoas da pobreza. Outra consequência disso é que, no futuro, o país vai enfrentar uma queda na população, que ficará mais velha. Para lidar com esse novo desafio, a China investiu pesado em capital humano. Eles avançaram de maneira espetacular na educação básica e no ensino superior. Investiram na infraestrutura e na competitividade internacional da economia. Gastaram pesado em ciência e tecnologia. Mais adiante, quando a população e a força de trabalho caírem, haverá uma mão de obra mais qualificada produzindo o triplo do que se produz hoje. O país terá mais idosos, mas haverá recursos para financiar as suas necessidades. 


E no Brasil? 


O país está fazendo tudo errado. O Brasil vive atualmente o seu melhor momento demográfico, mas tem a sua menor taxa de ocupação. Há 30 milhões de pessoas desempregadas ou subutilizadas. Isso é mais do que toda a força de trabalho espanhola. No final de 2020, o Brasil tinha cerca de 85 milhões de pessoas trabalhando para 212 milhões de habitantes. Cerca de 60% da população não estava ocupada. Desses, 10 milhões são os chamados “nem-nem”, jovens entre 15 e 29 anos que nem estudam, nem trabalham. China e Vietnã só venceram a pobreza porque conseguiram ter 60% da população empregada. Como disse Adam Smith, em 1776, o trabalho é a fonte da riqueza das nações. O Brasil precisa aproveitar o restante do bônus demográfico e dar o salto para o clube de países de renda alta até 2040. A história mostra que toda nação com elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) deu o salto para o andar de cima quando havia uma estrutura etária favorável, com mais jovens trabalhando. Só é possível enriquecer antes de envelhecer. 


https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:6HlL8TVJTC8J:https://crusoe.com.br/edicoes/146/oportunidade-desperdicada/+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ARTIGO DO GATO - Amapá no protagonismo

 Amapá no protagonismo Por Roberto Gato  Desde sua criação em 1988, o Amapá nunca esteve tão bem colocado no cenário político nacional. Arri...