sexta-feira, 22 de junho de 2012

Antenados - Carta anônima


Cheguei em casa estourado, cansado, cansado de tanto pensar, tentar ser um cara legal. Cansado de o pessoal pisar em todo mundo no escritório, e mais ainda cansado de forçar otimismo e acreditar que tudo vai melhorar, para mim e para os outros capachos lá do serviço. 

A caminho de casa, gritei, xinguei, urrei. Voltei assim caminhando feito um cão atropelado, sangrando, já nas últimas. Humilhado pelo assistente do subchefe, o que me resta? Isto significava não ter qualquer chance de crescer um milímetro sequer. Nunca.

Desiludi-me com a vida, de modo geral. Aquela desilusão que alguma hora nos abate. Entrei logo batendo a porta, tirei a gravata como se escapulisse da forca, joguei-me na poltrona surrada da sala. Pensei seriamente em pedir demissão, quebrar a cabeça na parede, eu sei lá. Pensei em fugir de casa, ir morar dentro do meu carro quebrado, e sobreviver da renda que daria se eu vendesse minha coleção de HQs.

"Um homem de trinta anos não pode continuar fazendo coisas de garoto"... E, é claro, eu deixaria minha esposa.

Um derrotado. Um fracasso total. Um homem sem perspectivas, sem riqueza, sem encanto.
Eu estava decidindo a melhor forma de me vingar do sistema, ou de morrer, quando ela apareceu na sala e grunhiu: 

 "Chegou uma carta aí pra você".

Jogou alguma coisa no meu colo, e quando abri os olhos já evaporara outra vez.

Contas! Contas a pagar!

Espera... Não.

"Hum...".

Fiquei curioso. Uma carta mesmo? O que poderia...?

No verso do envelope, no campo "destinatário", estava escrito: "Ao seu jeito manso".

O meu... O quê? Meu "jeito manso"?! Seria um código? Refrão de pagode? Engano?

Abri. Ninguém se identificava como remetente. Eu sabia, pelo menos, que não viera pelo correio. Alguém não muito longe de mim. Dediquei-me à boba alegria, de repente descoberta, de decifrar a missiva secreta.

Meu remetente anônimo começou:

"Nem tente. Não tente descobrir quem escreve a você. Será impossível, esforço inútil. Ademais, não importa. É só para dizer que você tem aí um tesouro para o qual talvez ainda nem tenha atentado, mas aí está... É esse seu jeito manso que me faz pensar que tudo ficará perfeitamente bem. Como você faz para convencer a todos de que as coisas podem realmente dar certo? Acredito que, se um dia você perder essa sua tranquilidade, o mundo também perderá de vez o próprio eixo.

Não quero que você pense que quem aqui escreve é alguma espécie de tresloucada. É apenas uma alma abatida, que um dia descobriu conforto no jeito manso de um broto tranquilo, de modos calmos e fala agradável. Esse sujeito era você. Agora sempre penso que tudo vai dar certo, porque as suas palavras naquele dia me convenceram de que seria assim. A minha vida (talvez eu esteja exagerando, mas pode ser verdade) mudou desde quando você, sem esforço nenhum, me fez entender que as coisas nunca estão muito ruins, mesmo quando assim parecem.

Agora esclareço: Eu devia isso a você. Devia esta carta em gratidão, porque até mesmo a mais singela gentileza entre desconhecidos pode gerar uma cadeia de bons acontecimentos que devem ser devidamente retribuídos. Assim eu retribuo. Pedindo a você que nunca deixe de ser a pessoa maravilhosa que você expõe, ainda que eu só tenha tido a chance de percebê-lo durante aquela curta interação no metrô... Espere! Estou falando demais. Você provavelmente não lembra. Lembra-se de quando me respondeu que horas eram, e sorriu? Não, acho que não. Mas se sim, saiba que acaba de ajuntar ainda muito mais pontos do que antes.

Enfim, meu caro desconhecido... Consegui descobrir o suficiente para chegar até aqui, ao seu endereço. E não prossigo, exceto para reforçar: Não deixe nunca de ser você. Não perca esse seu jeito manso, a voz segura e calma que falou comigo no metrô. Você parecia felicíssimo, mesmo que, conforme me disse, seu carro tivesse quebrado logo naquela manhã, tão importante. Não deixe de ser a pessoa divina que me pareceu, de coração tão leve e bom-humor imbatível, e que ainda me fez ter a irrepreensível vontade de possuir em mim essa mesma alma, esse mesmo espírito e a mesma mansidão que há em você. Não me puna por amá-lo secretamente, querido estranho, desde aquele dia... Você é um daqueles pequenos milagres...".

E era tudo. Terminava aí. Abrupta e infinitamente bela. Uma letra idosa. Talvez cansada. Mas bela. Quem seria?... Eu não conseguia lembrar. Havia sido tão traumático aquele dia em que o carro quebrou e eu pegara o metrô, porque a promoção tão esperada não veio! Tudo desde então parecia vir desabando... E agora, esta carta... Esta carta escrita por... Eu não conseguia lembrar-me de jeito nenhum! Uma vaga e imprecisa ideia de que tivesse dito as horas a uma senhora grisalha e tristonha no metrô, mas não tive certeza. 

Eu apenas... Apenas sorri. E o mundo voltou a ser o mesmo, o mesmo belo mundo que era belo demais para que eu pensasse em desistir. Ah! A delícia de se descobrir especial...

Crônica originalmente publicada no blog da colunista (acessaessa.blogspot.com), em 14 de março de 2012. Para ler mais textos dela, confira a página.

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