segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Artigo - O senador Pinóquio: entre a tragédia, a farsa e a comédia


As palavras podem ser vazias,/um discurso pronto,/pura demagogia, engodo,/enfim, manipulação, dissimulação.
Mas um exemplo... 
Ah! Um exemplo dificilmente pode se dissimulado.
Fazer é envolver-se, é estar inteiro, é doar-se além das promessas.
Andy Irons

“Demagogia é a capacidade de vestir as ideias menores, com palavras maiores.”
Abraham Lincoln


A voz histriônica, os gestos teatrais, o discurso arcaico e rococó eram indícios suficientes a indicar a tragédia que viria em seguida, a postura caricatural seria cômica, se não fosse trágica: o senador Randolfe Rodrigues, figura impoluta da defesa intransigente dos ideais da esquerda, paladino quixotesco da ética e da moral pública, com os braços de Rosemiro Rocha envoltos em seu frágil pescoço, apanha a mão de Robson Rocha - filho e herdeiro politico daquele que o afaga - a ergue dramaticamente e esbraveja: "Eis aqui o prefeito que será em tudo o melhor para Santana". Testemunha deste fato me ocorre de imediato à mente que, às vésperas de algumas eleições passadas, o então deputado estadual Randolfe Rodrigues era o principal ativista da famigerada CPI do Narcotráfico e vociferava contra o dito Rosemiro Rocha o alcunhando de "deputado narcotraficante". 

Diante dessa aporia uma pergunta ao senador não quer calar: EM QUE MOMENTO, SENADOR RANDOLFE RODRIGUES, O SENHOR ESTÁ MENTINDO: quando qualificava o deputado Rosemiro Rocha como criminoso, em tudo pernicioso para a vida pública ou agora que o qualifica como liderança de um projeto em tudo melhor para Santana? Há ainda uma ilação possível que, diante do respeito à amizade que ainda nutro pelo senador, recuso sequer a considerar, mas por respeito à lógica sou obrigado a manifestar: que o nosso pequeno senador considere efetivamente um criminoso, notório malversador da coisa pública a melhor liderança para conduzir os destinos do município de Santana. 

Entre potoqueiro e farsante, prefiro ter o senador Randolfe como mentiroso. Penso que um juízo dessa natureza, a despeito da gravidade que lhe está inerente, quando contraposto ao seu honrado passado é bem melhor do que o de cumplice cínico de um criminoso.

Seja como cínico, seja como mentiroso, o que ficou inequivocamente cristalino diante da escolha do senador Randolfe nas eleições em Santana é sua manifesta hipocrisia, ou seja, que o mesmo não passa de um politico populista e demagogo à moda antiga, travestido de novidade por certo, mas por dentro da casca engajada nos valores da esquerda, mora confortável e tranquilo um político tradicionalíssimo: narcisista, fisiologista e arrivista, sem nada a dever a um Demóstenes Torres, por exemplo.

Quando, aparentemente, a politica havia atingido o fundo do poço da História com o sucesso do nazi-fascismo, Hannah Arendt a grande pensadora da politica e do poder no século XX, com uma força intelectual solitária a reergueu ao patamar da dignidade, defendendo que esta era a atividade por excelência que nos constitui como humanos e, portanto, muito grande e importante para ser aviltada. 

Em termos harenditianos a dignidade é o princípio ético para não aviltar a politica, para não apequenar a vida. A dignidade é a força espiritual que nos mantem íntegros nas adversidades ou em momentos de cantos sirenicos; dignidade e integridade são irmãs siamesas. Como disse Todorov: se a sociedade nos condena, a dignidade consiste em combater essa sociedade. Podem vilipendiar nosso corpo, nossa sanidade, mas NINGUÉM ou NADA é capaz de retirar a nossa liberdade de escolha. Mas para ser digno "não basta tomar uma decisão para si mesmo, é preciso que a essa decisão siga-se um gesto consequente, perceptível e [significativo] para os outros". Contudo movidos pela síndrome de vira-latas é banal ouvir: "ser honesto no Brasil é para os tolos e ingênuos", mas essa também é uma escolha.

Nós atingimos uma paz de espirito quando o que queremos coincide com o que devemos e o que podemos. Quanto mais cristalinos os princípios, menos difícil fica lidar com os dilemas da vida. É absolutamente impossível viver uma vida sem escolhas, e o único modo de suportar esse peso da condição humana é ter sempre como instrumento racional básico de nossas escolhas a integridade, a dignidade. Afinal "o que é uma pessoa íntegra? É uma pessoa correta, justa, honesta, que não se desvia do caminho que, na esfera do discurso, ela própria estabeleceu para si mesma. É uma pessoa que não tem duas caras. Qual a grande virtude que uma pessoa íntegra tem? Ela é sincera".

De onde vem a palavra sinceridade? Os manuais de história nos demonstram que ela é uma palavra polissêmica, seu sentido mais recente vem da marcenaria. No século XIX, quando o marceneiro, ao trabalhar com aqueles móveis chamados coloniais, errava com o formão, ele pegava cera de abelha e passava naquele lugar para disfarçar o erro. Sine cera significa "sem cera", uma pessoa sincera é aquela que não disfarça o erro, ela assume. Em vez de fazer de novo, o marceneiro farsante finge que está certo passando cera de abelha. 

Senador Randolfe: Ética não é cosmética! Ética é sinceridade. 

Somos colegas de profissão, tenho certeza que o senhor sabe de onde vem a expressão original "sincera". Apenas para avivar-lhe a memória: no latim sine sera, sem cera, vem da criação de abelhas. Qual é o mel puro, o da geleia real? Não. É o mel sem cera. A noção de pureza está aí. Mas ela vem do teatro também. O mundo romano herdou parte dos princípios do teatro grego. No teatro grego, da Antiguidade Clássica, de 2500 anos atrás, havia uma situação muito interessante: todas as vezes que uma peça seria representada, os atores eram sempre homens, não havia espaço para as mulheres. Para que um ator pudesse fazer vários tipos de papéis, inclusive os femininos, eles construíam uma máscara feita de argila que seguravam na frente do rosto com uma varetinha. Que nome os latinos deram a essa máscara dos gregos? Persona. Daí vieram "personagem" ou "personalidade".

Aliás, tem gente que usa várias dessas máscaras. Deixa uma em casa, outra no Senado, nos holofotes da Globbels usa outra, trás outra diferente para Macapá e porta uma diversa em Santana. Comporta-se em Brasília de um jeito e, no Amapá, de outro. Ele não admite no Congresso o menor deslize ético de um colega, mas pouco se incomoda se ele mesmo comete os seus ou legitima os de outros. Esse tipo prega que na vida pública tem que ter mais participação das pessoas, quer participar das decisões de um determinado patamar da hierarquia para cima, mas não acha e não age para que deva haver democracia dali para baixo. 

Os romanos herdaram do teatro grego essa ideia de homens representando todos os papéis, mas, em vez de construírem máscaras de argila adotaram outra técnica: eles pegavam cera de abelha, misturavam com pigmentos vegetais e faziam uma pasta, que era passada no rosto. É por isso que uma pessoa sincera é uma pessoa sem máscara, que não tem duas caras, é aquela que não fala uma coisa e pensa outra, é aquela que não diz uma coisa e age de outro modo. A sinceridade é, de fato, um dos elementos constitutivos da integridade e da dignidade.

Esse texto é um misto de decepção e revolta. A história de amizade, companheirismo politico e profissional que construí com o hoje senador Randolfe Rodrigues remontam à época em que o dito cujo era meu aluno e uma promissora liderança estudantil; desde então divergirmos inúmeras vezes, a mais importante quando da sua saída do Partido dos Trabalhadores; mas nunca, nunca nessa trajetória de mais de vinte e cinco anos, sequer cruzou na minha mente uma centelha de dúvida quanto à sincera adesão desse meu amigo aos valores da esquerda. 

No entanto, hoje, por um gesto, por uma escolha do amigo, sou obrigado a por em dúvida a sinceridade de seu engajamento aos valores que orientam a construção de uma sociedade libertária, justa e fraterna. Torço para que tenha sido uma escolha desastrada que lhe permita retomar o caminho da construção de uma utopia de justiça e liberdade; adianto-lhe apenas que a toda escolha agrega-se uma responsabilidade, e essa, no curso da história que está por vir, vai cobrar seu preço, qual seja, o seu apequenamento politico. Hoje o senhor até pode ser eleitoralmente vitorioso, ainda que eu entenda que tenha sido uma vitória pírrica. Não sou a mãe Dinah para prever futuros, mas hoje também começou a sua derrocada, a ladeira abaixo da sua degenerescência como homem público. 

Tenho a firme sensação que aconteceu em relação à escolha do senador Randolfe Rodrigues em Santana uma das coisas que eu mais temo quando se tem em mira um debate ético: é a chamada adesão cínica. É quando o sujeito diz: "A ética é a condição sine qua non para o futuro do Brasil". Mas, ele mesmo, no dia a dia, comporta-se da seguinte maneira: "Ética? Isso é de menos. Poder não casa com ética. O mundo politico é competitivo, a regra básica é cada um por si e Deus por todos. Interessa-me as posições de poder, pouco me importa os meios de atingi-las". Esse tipo de adesão cínica é muito perigoso. 

Alguém já disse em outro lugar: eu prefiro o mentiroso ao cínico. Porque o mentiroso é alguém que você captura a mentira dele, mas o cínico finge o tempo todo. E esse é o tipo mais deletério, porque dá a impressão de que está aderindo, que está engajado na causa e, como não está, enfraquece a corrente daqueles e daquelas que acham que a politica é muito grande e importante para ser aviltada.
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Dorival da Costa dos Santos (Nei). Advogado, Professor de História da UNIFAP, Mestre em História Social pela UNICAMP e Doutorando do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.


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