sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Antenados - Eu me acuso


Durante muito tempo cultivei o hábito de leituras rasas. Não que, fruto de uma mente preguiçosa, minhas interpretações fossem ocas ou indolentes, ao contrário: Os males estavam centrados na vaziedade de meus livros de cabeceira, enquanto eu tentava cegamente atribuir-lhes mais sentido do que algum dia viriam a ter em sua superficialidade. Machucava eu meu próprio senso crítico, turvava minha percepção, na intenção quase amalucada de impor densidade a textos mais ralos que vinagre, de ordenhar e saborear o mel desses textos tão acres e estéreis quanto o mesmo vinagre. Não ignoro, entretanto, a validade de se ler qualquer coisa. Aprendi palavras lindíssimas com os melífluos romances de banca, e arranquei inspiração dos textos mais improváveis. Ainda hoje leio muito mais daquilo que não me acrescenta nada nem me problematiza, do que daquilo que é capaz de desnudar o abismo complexo e sublime das questões humanas. Contudo, mesmo ainda trilhando meus passos sobre títulos duvidosos, não mais os endeuso. Despojei-me da teimosia ferrenha de mergulhar num chão de concreto, porque, afinal, canonizar o vácuo só serve para conduzir às ruínas sensorial, psíquica e crítica. 

Cheguei a essas novas resoluções literárias graças à própria literatura. Destaco, mais especificamente, dentro da coletânea de obras atreladas à disciplina de Teoria da Literatura II que tenho estudado na faculdade, o artigo bastante instrutivo de Machado de Assis chamado "O ideal do crítico" (pode ser encontrado em domínio público, no site  http://www.dominiopublico.gov.br/, sob o título Textos críticos). O artigo é datado de 1865, e ainda dialoga conosco como se estivéssemos face a face com o escritor, vivenciando com ele o mesmo contexto e as mesmas questões sociais. Isso porque a crítica literária, do final do século XIX e início do XX, até hoje, vem traçando um árduo caminho. 

As dificuldades apontadas por Machado, as quais terminam por lançar os escritores a um mar sem farol e relegar os leitores à condição de desnutridos, são os hábitos daqueles que se pretendem críticos, mas insistem em escarnecer, depreciar, ignorar as obras e autores sem nem ao menos lê-las, ou então enaltecer a produção de amigos, conhecidos, "fregueses", numa camaradagem putrefata e sem qualquer método ou respeito ao fazer poético e suas leis.

Machado defende uma crítica erguida sobre as bases da elegância, minúcia, tolerância, urbanidade. Entregar-se à obra em análise e devorá-la à exaustão, despojado dos preconceitos e opiniões pré-formadas, e de qualquer vinculação a pessoas, estilos ou correntes. É utópico, mas aproximar-se alguns centímetros do perfil do crítico machadiano já seria um avanço cultural descomunal. 

E agora você se pergunta o que o ofício do crítico tem a ver com as minhas leituras rasas, ou ainda com a sua vida. Acontece, querido leitor, que o crítico também somos eu e você. Não estamos isentos de exercer nossa análise sobre todo exemplar que nos chega às mãos. Muito mais do que um passatempo literário gratuito, é este um dever moral, acredite, pois a literatura está atrelada à sociedade, e contribui mais para a humanização de um indivíduo do que nos aventuramos a imaginar. A falta de exercício crítico é o que nos faz consumir dejetos. E os consumimos tentando justificá-los, como se fossem louváveis, dignos de defesa e proteção. 

Não proponho que joguemos fora os gibis, as Sabrinas, as leituras glamorizadas por esse marketing globalizado - o que inclui aquelas que já vêm atadas ao ingresso do cinema, numa espécie de combo indissociável. Sim, permaneço guardando na prateleira as páginas tão cheias de vazios... Mas já alcancei em parte a consciência de que elas nada me acrescentam, e talvez até me destruam.  É a esta ideia que devemos dominar: Hoje, está exposto para nós um panorama literário em que já nem mesmo a crítica camarada ou atroz se constrói, mas sim toneladas de lixo acéfalo em revistas, blogs e jornais, resenhas que muito mais se assemelham a mera publicidade editorial, sem nada pesar ou dizer acerca das obras. Esteja, portanto, atento ao que você consome. Não tenha medo de ser crítico, de rejeitar, de filtrar, fazendo-o com ética e elegância. A literatura não é o produto da moda, nem aquilo que todo mundo lê - e ignora os reais motivos. A literatura é muito mais profunda, é direito, dever, é ensino, fôrma, inspiração, constrói e integra, exige um mínimo de compromisso e uma boa massa cinzenta a funcionar.

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