Mais uma picuinha para a coleção
A importação de médicos estrangeiros tem polarizado as opiniões em nosso
país. Dentro do grupo que apoia a vinda, há fortes argumentos a favor, assim
como há outros argumentos de peso no grupo que considera ilegítima a importação
desses profissionais.
No entanto, por mais sensatos que sejam os opinantes, eventualmente
acabam se tornando combatentes ferozes. Deixam de tentar alcançar uma solução
fruto do embate de ideias, um meio-termo útil. Partem para a agressão e, pior,
para a degradação. Em ambos os polos, existem gradações de intemperança e
imbecilidade. Há gente disposta a comprovar o retrocesso agudo da espécie
humana.
Manifestação de um desses lados imbecis ocorreu quando chegaram em
Fortaleza alguns médicos cubanos. Mais especificamente, 96 médicos
estrangeiros, sendo 79 deles oriundos de Cuba. O que aconteceu? No dia 26 de
agosto, quando esses profissionais deixavam a Escola de Saúde Pública, no
primeiro dia do curso para o programa Mais Médicos, do governo federal, foram
xingados, vaiados, hostilizados, chamados de "escravos".
Daí você pensa: "Quem aprontaria uma dessas?". Bem, pessoas
que penaram para passar no vestibular mais concorrido do Brasil, e, aprovados,
penaram mais alguns árduos anos para conseguir o diploma de medicina. Isso
mesmo. Os promotores do apartheid em Fortaleza eram médicos liderados pelo Simec (Sindicato dos Médicos do
Ceará).
Os estrangeiros, após a aula, continuaram no local, para a solenidade de
– o que é irônico – boas-vindas. Lá fora, os revoltosos continuavam a imprecar
contra seus colegas de profissão. Às 20h, terminada a cerimônia, a situação
atingiu seu ápice, quando os dois grupos finalmente se viram frente a frente.
Houve agressão física (alguns pescotapas contra o representante do ministro da
saúde), mas talvez o que mais tenha doído foi aquilo que disseram os
brasileiros contra os estrangeiros.
“Incompetentes!”, bramaram os daqui. “Escravos!”. Por que tornar a cor
da pele um argumento em prol do desmerecimento de alguém? Estamos nesse nível
de idiotice. Além disso, alguns ainda temem, devido à nacionalidade dos
médicos, uma revolução comunista. Imaginam conspirações e outros pavores
político-esotéricos.
Ademais, há quem tema o despreparo, devido a divergências na formação
profissional entre os países. E com isso se esquecem de que, na verdade, os de
fora não vêm para cá se aventurar na rinoplastia ou na lipoaspiração (o que
poderia ser, oh, meu Deus, fatal!), mas vêm tratar de coisas básicas como
diarreia, verminose, malária, vacinação, noções de higiene. Fazer o que muitos
daqui não querem, por se julgarem, talvez, superiores demais para meter a mão
nos coliformes fecais.
Correndo o risco de ser demasiado simplista, analiso assim: os médicos
brasileiros não querem ir para os municípios mais pobres e remotos. Aos
estrangeiros, nada os prende. Nem status, nem família, nem convivência entre a high society, nada. Eles estão dispostos. Querem a tigela que os brasileiros
abandonaram, por mais que as condições de infraestrutura nos interiores sejam
precárias. Uma vez fora de seu país, "meterão a cara", não têm muito
a perder ao se embrenhar pelos locais mais carentes.
E eu não temo conspiração política nem despreparo profissional. O que eu
temo é que a situação continue sem solução. E mais: que os brasileiros consigam
demonstrar tal grau de racismo e preconceito, ao ponto de esses médicos irem
embora daqui escorraçados. Eu temo a incivilidade, a baderna contra a
humanidade dos outros.
Enquanto isso, médicos brasileiros fazem picuinha. É como se lutassem
por manter a posse de um brinquedo que largaram há muito tempo, mas que ainda
assim não querem ver nas mãos de outra criança.
Médicos cubanos são vaiados por médicos brasileiros em Fortaleza, numa recepção bastante xenofóbica por parte de um povo que se alegra tanto da hospitalidade e cortesia que, afinal, não possui |
O que mais eu penso? Penso que há ainda muito lixo ideológico, político,
partidário, egocêntrico, hipócrita, racista, elitista, ignorante, arrogante no
meio dessa discussão. Enquanto nossas vidas e mentes não estiverem devidamente
assepsiadas, será impossível resolver o problema da saúde sem macular pelo
menos um dos grupos envolvidos no dilema. Sejam os médicos daqui, sejam os
médicos de lá, sejam os pacientes. E vale lembrar: pacientes que, por enquanto,
só o que fazem mesmo é esperar.
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