sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Mais uma picuinha para a coleção

A importação de médicos estrangeiros tem polarizado as opiniões em nosso país. Dentro do grupo que apoia a vinda, há fortes argumentos a favor, assim como há outros argumentos de peso no grupo que considera ilegítima a importação desses profissionais.

No entanto, por mais sensatos que sejam os opinantes, eventualmente acabam se tornando combatentes ferozes. Deixam de tentar alcançar uma solução fruto do embate de ideias, um meio-termo útil. Partem para a agressão e, pior, para a degradação. Em ambos os polos, existem gradações de intemperança e imbecilidade. Há gente disposta a comprovar o retrocesso agudo da espécie humana.

Manifestação de um desses lados imbecis ocorreu quando chegaram em Fortaleza alguns médicos cubanos. Mais especificamente, 96 médicos estrangeiros, sendo 79 deles oriundos de Cuba. O que aconteceu? No dia 26 de agosto, quando esses profissionais deixavam a Escola de Saúde Pública, no primeiro dia do curso para o programa Mais Médicos, do governo federal, foram xingados, vaiados, hostilizados, chamados de "escravos".

Daí você pensa: "Quem aprontaria uma dessas?". Bem, pessoas que penaram para passar no vestibular mais concorrido do Brasil, e, aprovados, penaram mais alguns árduos anos para conseguir o diploma de medicina. Isso mesmo. Os promotores do apartheid em Fortaleza eram médicos liderados pelo Simec (Sindicato dos Médicos do Ceará).

Os estrangeiros, após a aula, continuaram no local, para a solenidade de – o que é irônico – boas-vindas. Lá fora, os revoltosos continuavam a imprecar contra seus colegas de profissão. Às 20h, terminada a cerimônia, a situação atingiu seu ápice, quando os dois grupos finalmente se viram frente a frente. Houve agressão física (alguns pescotapas contra o representante do ministro da saúde), mas talvez o que mais tenha doído foi aquilo que disseram os brasileiros contra os estrangeiros.  
“Incompetentes!”, bramaram os daqui. “Escravos!”. Por que tornar a cor da pele um argumento em prol do desmerecimento de alguém? Estamos nesse nível de idiotice. Além disso, alguns ainda temem, devido à nacionalidade dos médicos, uma revolução comunista. Imaginam conspirações e outros pavores político-esotéricos.
Ademais, há quem tema o despreparo, devido a divergências na formação profissional entre os países. E com isso se esquecem de que, na verdade, os de fora não vêm para cá se aventurar na rinoplastia ou na lipoaspiração (o que poderia ser, oh, meu Deus, fatal!), mas vêm tratar de coisas básicas como diarreia, verminose, malária, vacinação, noções de higiene. Fazer o que muitos daqui não querem, por se julgarem, talvez, superiores demais para meter a mão nos coliformes fecais.

Correndo o risco de ser demasiado simplista, analiso assim: os médicos brasileiros não querem ir para os municípios mais pobres e remotos. Aos estrangeiros, nada os prende. Nem status, nem família, nem convivência entre a high society, nada. Eles estão dispostos. Querem a tigela que os brasileiros abandonaram, por mais que as condições de infraestrutura nos interiores sejam precárias. Uma vez fora de seu país, "meterão a cara", não têm muito a perder ao se embrenhar pelos locais mais carentes.

E eu não temo conspiração política nem despreparo profissional. O que eu temo é que a situação continue sem solução. E mais: que os brasileiros consigam demonstrar tal grau de racismo e preconceito, ao ponto de esses médicos irem embora daqui escorraçados. Eu temo a incivilidade, a baderna contra a humanidade dos outros.
Enquanto isso, médicos brasileiros fazem picuinha. É como se lutassem por manter a posse de um brinquedo que largaram há muito tempo, mas que ainda assim não querem ver nas mãos de outra criança.


Médicos cubanos são vaiados por médicos brasileiros em Fortaleza, numa recepção bastante xenofóbica por parte de um povo que se alegra tanto da hospitalidade e cortesia que, afinal, não possui
O que mais eu penso? Penso que há ainda muito lixo ideológico, político, partidário, egocêntrico, hipócrita, racista, elitista, ignorante, arrogante no meio dessa discussão. Enquanto nossas vidas e mentes não estiverem devidamente assepsiadas, será impossível resolver o problema da saúde sem macular pelo menos um dos grupos envolvidos no dilema. Sejam os médicos daqui, sejam os médicos de lá, sejam os pacientes. E vale lembrar: pacientes que, por enquanto, só o que fazem mesmo é esperar.  


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