sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

ENTRELINHAS

Arley Costa



Frankenstein, personagem do livro de Mary Shelley recentemente encenado nas telonas por Robert de Niro, lembra o Félix da novela há pouco encerrada. Abandonados pelos pais, ambos crescem sem receber qualquer demonstração de amor e afeto. Na busca pela atenção e carinho dos pais, Félix e Frankestein, realizam atrocidades as mais diversas e acabam por afastar ainda mais aqueles a quem amam. No fim, conseguem ficar junto aos pais. Frankenstein se resigna em levar o cadáver do pai consigo para terras distantes. Félix, como todos lembram, teve a chance de ouvir uma declaração de amor de seu pai, apesar deste estar paralítico, parcialmente cego e absolutamente desgostoso da vida. 
Ambos os protagonistas, embora sejam potencialmente bons, se tornam hostis e malévolos aos serem rejeitados pelos pais e a sociedade que não os tolera. Frankenstein é rejeitado por sua aparência, Félix pela homossexualidade. Nesse sentido, a principal diferença dos personagens reside no fato de que um é frágil, delicado, "florzinha" nos termos pejorativos atuais. O outro, criado de forma a ser gigantesco, extremamente robusto e de aparência insuportável, é, em suma, um monstro. Apesar dessa distinção, em razão do que são, os pais primeiro e a sociedade depois, os rejeitam por sua aparência ou comportamento. Forçados a viver na marginalidade expressam o que há de pior em seus comportamentos, seja jogando bebês em lixeiras ou causando mortes. 
Frankenstein não teve chance de mudar sua história. Sua aparência considerada horripilante e grotesca era vinculada à agressividade e fazia com que todos o odiassem antes mesmo de conhecê-lo. Onde quer que se apresentasse era hostilizado e atacado, não fosse sua força descomunal não teria resistido às agressões sofridas. Félix teve outra sorte. Numa sociedade que lentamente vem se modificando no sentido de aceitar a homoafetividade, o final do folhetim permitiu que o personagem se regenerasse das perversidades cometidas, acertando-se com todos aqueles a quem proporcionara algum mal, trocasse um beijo gay e ouvisse a declaração de amor do pai. Mas um elemento foi crucial nessa transformação, Félix teve a chance de encontrar alguém que lhe estendesse a mão e lhe permitisse conhecer o afeto e o amor. Vivenciar o acolhimento, o cuidado e uma relação saudável sem preconceitos e pré-julgamentos fez com que pudesse ter a chance de mudar seus comportamentos e construir uma rede de respeito e carinho em torno de si. A mesma chance não esteve disponível ao Frankenstein. Até o ponto que conhecemos de sua história, o carinho e o amor lhe foram negados. Acabou por isolar-se do mundo para não causar ou suportar mais sofrimentos.
É importante que percebamos a estreita relação entre criador e criatura. Félix e Frankenstein cometeram atrocidades porque foram tratados com preconceito e agressão pelos pais e sociedade. O amor paterno e social lhes foi negado, e muitas das maldades que cometeram visava tão somente obter a atenção e o amor anteriormente recusados. Preconceito e injustiça exarados pelos pais e os que lhes eram próximos retornaram na forma de agressões e mortes, sem que esses tivessem clareza dos malefícios que produziam. 
Assim como Frankenstein, há em nossa sociedade pessoas que são hostilizadas e vinculadas instantaneamente ao crime tão somente por sua aparência ou condição. A pobreza e sua expressão étnica parecem ser horrendas aos olhos de um mundo capitalista que ironicamente alega que todos têm as mesmas oportunidades. Se aqueles marginalizados por essa sociedade exprimem comportamentos inadequados, tudo que sabemos fazer é bradar por redução da maioridade penal, penas mais extensas, supressão dos direitos humanos e morte. Isso quando não aparecem criminosos, autointitulados justiceiros, que resolvem providenciar eles mesmos a punição àqueles a quem supõem criminosos. 
É impossível não traçar um paralelo dessa ideia com a imagem largamente divulgada de um rapaz negro, com marcas de espancamento, preso nu por um cadeado de bicicleta a um poste e com os casos similares de linchamentos ocorridos recentemente. Os crimes de colarinho branco não produzem respostas similares, ao contrário, os marginais endinheirados são bem recebidos pela sociedade e ninguém se arvora a puni-los exemplarmente. Assim, parece que enquanto avançamos timidamente em aceitar as relações homoafetivas, o preconceito contra as pessoas negras e pobres continua elevado, apoiado por pensamentos conservadores, reacionários e suportado por grupos nazifascistas para os quais uns merecem ter direitos enquanto outros podem ser tratados com toda a violência possível, de preferência finalizando o processo com a morte. Como sociedade parece que não somos capazes de criar um mundo menos desigual e mais justo, onde os marginalizados, como Félix, tenham chance de construir outro tipo de relação social. E isso é um problema, pois apenas ampliamos a destruição ao combater violência com mais violência.
É preciso que façamos diferente de Victor Frankenstein que se negou a estabelecer uma relação paterna e afetiva com o monstro que criara e terminou com sua vida dizimada.  Devemos, como Félix e seu pai, ajustar as diferenças sociais existentes e ser capazes de reconhecer que o outro merece mais do que uma vida sofrida de exclusão. Devemos fazer com que a nossa sociedade seja capaz de acolher a todos, atuar de forma a dirimir as distâncias sociais e ser capazes de amar, antes que nossa sociedade seja totalmente destruída. Precisamos, antes de tudo, de amor à vida.

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