Professor da Unifap, Doutor em Ciências pela USP, diretor do SINDUFAP
Pedagogia do Oprimido em ação
"A única coisa que está fazendo sentido nesse carnaval é a greve dos garis. Os garis sacam muito de intervenção urbana e instalações sensoriais. Instalação viva, onipresente que se multiplica com a interação do público! Olha que incrível! E nem precisam estar presentes para a performance acontecer. Aliás, a potência da performance está justamente no invisível. Performers do invisível! Olha que máximo! Garis dando aula aberta de performance urbana!! Estão mandando muito bem na composição da paisagem da cidade. A não-arte é mais arte que a arte-arte, já dizia Kaprow. Garis, amo vocês!"
O trecho acima, de autoria de Raphael Arah, com a qual encerrei o texto "Não tem gari no samba!" é também apropriado para a abertura deste, por dois motivos. De um lado por revelar a intervenção provocada na sociedade e, de outro, porque atribui aos garis um papel com o qual eles aparentemente não possuem qualquer vínculo: o educar. A greve dos garis, ora encerrada com uma estrepitosa vitória, é uma das mais importantes lições que alguém poderia aprender em um mundo de exploração. Uma aula de cidadania e luta por direitos, onde pessoas cuja profissão é uma das mais exploradas, humilhadas e invisíveis, simplesmente ousaram. Ousaram não agradecer as migalhas que lhes são lançadas. Ousaram não se subjugar aos desmandos e desaforos dos governantes. Ousaram não se dobrar às mentiras e deturpações da grande mídia. Ousaram lutar por salários e direitos. Ousaram, enchendo a cidade de lixo, angariar apoio da população. Ousaram sair da invisibilidade e mostrar-se importantes. Ousaram tornar vitoriosa uma greve. Ousaram ir além dos direitos e conquistar dignidade e respeito.
Toda essa ousadia traduziu-se em um forte poder de intervenção social. Além da performance do invisível, os garis alteraram a representação social que existe sobre o trabalho e o trabalhador de atividades consideradas braçais, bem como sobre a importância da luta. Sua ação mostrou que as pessoas com menores remunerações, aquelas que vivem de salário mínimo, não são lixo nem invisíveis. Que apesar de desenvolverem atividades que a maioria procura evitar, são benquistos pela população. Que mesmo com a ameaça de desemprego é possível ir às ruas lutar por direitos e contra a exploração. Com sua intervenção, os garis ensinaram, ou lembraram, para alguns de nós, que com a luta é que se conquista e se muda a vida!
Decididamente os garis, com sua greve, deram uma aula de poder popular, uma aula sobre a força oriunda de trabalhadores unidos e organizados. O poder instituído, entretanto, não suporta que os dominados se expressem e busca sempre minimizar esses ensinamentos. Na tentativa de ironizar e desgastar a luta dos trabalhadores, via greves e paralisações, o prefeito atribuiu a greve dos garis aos professores. Nas palavras de Eduardo Paes, "A culpa é dos professores que estão fazendo escola com esse negócio de greve". Se era para ser uma crítica, não funcionou. Os professores realmente comprometidos com a educação assumiram a afirmação como um elogio.
Os grandes teóricos da educação ensinam que os professores devem ir além dos conteúdos e ensinar para a vida e que, portanto, é papel da docência desvelar ideologias, revelar processos de exploração humana e auxiliar as pessoas a combater a opressão. Se os professores estão ensinando que há algo errado em alguém ganhar um salário miserável e que os trabalhadores devem lutar contra isso, então a educação está no caminho certo. Se o fato dos professores irem às ruas reclamar por seus salários está ensinando outros a fazer o mesmo, significa que esses, de fato, estão educando, pois educar é mediatizar a relação das pessoas com o mundo para que vejam além das aparências e transformem suas existências.
O pensar sobre a realidade envolve o estabelecimento de juízos, identificar o certo e o errado, discriminar o que se gosta e o que não se gosta, compreender as relações estabelecidas e invisíveis que asseguram o processo de exploração. O pensar, diferente do que muitos possam imaginar, não é passivo, é uma ação reflexiva sobre o mundo. O compromisso de todo educador está vinculado a essa reflexão dialógica que rompe com a estrutura de dominação e leva a agir, a lutar. Decorre desse vínculo uma famosa frase de Paulo Freire: Ser educador e não lutar é uma contradição pedagógica.
Os professores buscam ser os protagonistas de uma transformação social libertadora a partir de sua prática pedagógica. Construir sujeitos capazes de pensar e falar por si mesmos, donos de suas próprias ações, emancipados em um mundo de subjugações é o ápice e o objetivo dessa atuação. A prática e a luta de professores compromissados tem sido importante em desvelar vários processos ideológicos e transformar muitas realidades, mas dessa vez, é necessário admitir, foram os garis que, sobre esse tema, deram uma aula magistral. Paulo Freire ficaria orgulhoso ao olhar a greve dos garis e ver sua Pedagogia do Oprimido em ação.
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