sexta-feira, 28 de março de 2014

ENTRELINHAS

Arley Costa
Professor da Unifap, Doutor em Ciências pela USP, diretor do SINDUFAP

Memória aos 50 


O filho, ainda enfrentando as dificuldades da primeira história de amor, busca auxílio no pai. Pede-lhe conselhos sobre como abordar a menina que povoa seus sonhos e como fazer sua paixão platônica transformar-se em namoro. O pai rememora o passado. Paqueras, namoros, beijos vêm à mente. Em suas recordações tudo foi simples, tranquilo e livre de dificuldades. Esquece-se dos problemas que enfrentou, da insegurança típica da adolescência, das recusas, do receio de ser rejeitado e do temor de perder o amor do momento. Ancorado apenas nas boas memórias, diz ao filho que não há mistérios, que a conquista é fácil e começa a narrar estratégias, que acredita, infalíveis. 
A memória do brasileiro sobre sua história recente parece vivenciar esse mesmo apagão de lembranças desagradáveis do passado. Em 2014 completaram-se 50 anos do golpe que retirou João Goulart da presidência e deu origem a uma ditadura empresarial-militar no Brasil. Uma sequência de gestões de caráter nacional desenvolvimentista estendeu-se até 1985 e teve seus acertos e erros na forma de conduzir o país. Cada um pode fazer sua avaliação das políticas de Estado e governo desenvolvidas durante o intervalo entre o golpe e a redemocratização. Mas independente da leitura política e econômica que se faça, não é possível esquecer-se das retiradas de direitos humanos e civis, cuja expressão jurídica mais evidente foi o Ato Institucional Nº 5, nem dos casos de tortura, desaparecimento e morte daqueles que ousaram se opor ao regime ditatorial. 
Enganam-se aqueles que acham que isso é imaginação ou teoria da conspiração, pois o Coronel Paulo Malhães, reformado do Exército, assumiu em depoimento à Comissão Nacional da Verdade que houve tortura, mortes e ocultação de cadáver durante o período dos governos militares. Aqueles que sofreram diretamente ou por meio de seus parentes as agressões do Estado trazem ainda frescas nas recordações as dores e angústias vivenciadas. A memória, entretanto, minimizou os problemas nas lembranças daqueles que não se colocaram como opositores ao regime. Estes, esquecidos de todos os problemas ocorridos na ditadura e relembrando saudosamente dos eventos que recordam agradáveis daqueles tempos, reeditaram em 2014 a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. 
A marcha original, ocorrida em 1964, foi um dos estopins para a derrubada do presidente e contou com mais de 500.000 pessoas nas ruas em São Paulo. A reedição em 2014, embora um fiasco em termos numéricos, serve para nos fazer atentar em algumas questões. Primeiro, há um grupo disposto a se organizar contra os avanços das minorias que na luta conseguiram modificar um pouco a situação de discriminação e exclusão existentes em nosso país. Não há de se menosprezar o fato da marcha ter baixo volume de participantes, pois essas pessoas aceitaram expor suas ideias nas ruas mesmo em pequeno número, o que significa um interesse no enfrentamento. Em um país eminentemente conservador, onde a democracia é incipiente e parece se resumir à possibilidade de votar em representações, o colorido do passado trazido pela ausência de memória pode fazer com que grupos reacionários ganhem força rapidamente. É importante ter cuidado com isso!
Segundo, precisamos de uma reforma política real para que as pessoas possam realmente ter capacidade de intervenção nos rumos do país. É preciso resgatar a crença nos partidos políticos e no sistema representativo, sob pena da ideia de democracia ser considerada descartável e criarmos a condição de surgimento de regimes ditatoriais, totalitários, fascistas ou qualquer outro regime de exceção que entenda ser possível suprimir direitos humanos em benefício de alguns. Do mesmo modo, é inadmissível que um governo pretensamente democrático, como o atual, se utilize de recursos jurídicos como o Decreto nº 8135/2013 que fortalece a criminalização de manifestante e movimentos sociais e que claramente visa suprimir a luta por direitos por parte de populares e da classe trabalhadora.
Terceiro, é necessário reforçar o trabalho de resgate e publicização da memória do que ocorreu na ditadura empresarial-militar. Existem alguns trabalhos sendo desenvolvidos nesse sentido como a Comissão Nacional da Verdade e suas vertentes estaduais que foram instituídas com o intuito de identificar violações dos direitos humanos. Outras entidades como o ANDES-SN, sindicato que congrega os professores universitários brasileiros, também possuem sua versão da comissão da verdade com o objetivo de revelar os acontecimentos que instauraram uma ditadura, suprimiram liberdades individuais e instituíram formas de repressão, perseguição política e tortura, muitas vezes resultando em morte, que foram aplicados contra movimentos sociais, organizações sindicais, universidades e trabalhadores. 
O resgate de todos esses eventos é importante para que mantenhamos vivas as memórias dos infortúnios de um regime de exceção onde pessoas e seus direitos não são dignos de valor. Precisamos fazer isso porque as pessoas tendem a preservar na memória as lembranças boas de seu passado e a apagar aquelas não tão agradáveis. O passado é sempre lembrado como mais belo e colorido do que realmente vivenciamos e tendemos a achar que nossas infância e adolescência foram maravilhosas, sem problemas, preocupações ou dificuldades. Se cairmos nesse engodo, correremos sérios riscos de estar criando as condições para o ovo da serpente. Devemos todos ficar atentos, pois é inadmissível que atrás de palavras fortes e belas como família, deus e liberdade estejam sendo gestadas formas de repressão e morte. Nossa memória, mesmo aos 50, tem que funcionar!

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