sexta-feira, 11 de abril de 2014


ENTRELINHAS

Arley Costa
Professor da Unifap, Doutor em Ciências pela USP, diretor do SINDUFAP

Você tem cultura?


Funk, heavy metal, brega, sertanejo, entre outros estilos, são por vezes acusados de não ter qualidade para serem chamados de música. Assim, muitos daqueles que escutam estilos musicais que não representam os modelos hegemônicos, provavelmente já passaram por situações em que precisaram defender suas escolhas contra ironias e escárnios. No passado o samba sofreu estigma semelhante, assim como outros estilos e instrumentos. O violão, por muito tempo, foi considerado coisa de marginal. Se você gosta de ouvir estilos musicais não apreciados pela maioria, será que você tem cultura?
Falando sobre cultura, Chayenne Farias, uma amiga, escreveu em seu facebook: 'Curioso essa polêmica sobre a música da Valesca (...) vir à tona logo quando eu estou nos passos finais da escrita do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), (...) nele eu discuto o tecnobrega enquanto manifestação cultural híbrida e cosmopolita. E nas leituras que eu fiz uma visão que muito me desagradou foi a que colocava a música "brega" numa espécie de limbo historiográfico, não sendo erudita o suficiente pra ser considerada Música Popular Brasileira (assim, com as iniciais maiúsculas mesmo), porém comercial demais para ser considerada folclórica. Esse estigma afastou essa música dos estudos "sérios" de pesquisadores "sérios" preocupados com o que é relevante, afinal pra que falar do Alípio Martins ou da  Gang do Eletro quando tem tanto Chico Buarque e Mestre Verequete melhor? Então preciso desabafar que me senti plenamente representada ao ler a indignação da Valesca (...). Valesca, não tem nada de errado em cantar o recalque das inimigas ou o poder das bucetas. De forma alguma eu quero aqui discutir música melhor ou pior, mas convenhamos, você é mais popular que o Chico, é você que ta tocando no morro aí no Rio de Janeiro e no meu celular aqui em Macapá. Não precisamos nos sujeitar a padrões de qualquer intelectualzinho de apartamento que seja. Viva a cultura popular!'
O texto de Chayenne está ligado aos comentários nas redes sociais sobre a prova de filosofia aplicada por um professor do Distrito Federal com o seguinte comando e alternativas: "Segundo a grande pensadora contemporânea Walesca Popozuda, se bater de frente: a) É só tiro, porrada e bomba; b) É só beijinho no ombro; c) É recalque; d) É vida longa". Muitos questionaram o fato da funkeira ser chamada de pensadora. Valesca disse acreditar 'que o que criou toda essa confusão é esse tal "Pensadora" que ele colocou (...), EU ACHO UMA BOBAGEM ISSO TUDO, (...) se ele tivesse colocado um trecho de qualquer (...) outro gênero musical que não fosse o FUNK talvez não tivesse gerado tal problema (...) E se fosse MPB ou uma música americana que tanto é valorizada por nós? Será que daria a mesma polemica?'.
Questionado, o professor argumentou que pretendia gerar polêmica. Não sei quanta polêmica gerou entre seus alunos, mas na sociedade a situação incendiou. Verdade que a questão, tal como colocada, exigia dos alunos apenas saber a letra da música, quando muito mais poderia ser aproveitado. Aos que minimamente conhecem as músicas da Popozuda, os comentários são, de um lado, incentivo e banalização do sexo, mas de outro, há os que entendem que as letras polemizam questões importantes que a maioria das músicas não aborda. Objetos de estudo em uma dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense - "My pussy é o poder! - A dissertação que pisca", os temas que surgem nas letras da cantora podem ser utilizados como ponto de partida para discussões filosóficas. Entre os assuntos abordados pelo funk de Valesca estão a liberdade sexual; o direito da mulher em expressar seu interesse por prazer, o que deixaria de ser uma exclusividade masculina; a opção por relações que envolvam outra pessoa do mesmo gênero ou ainda múltiplas pessoas na interação; a escolha do que fazer com o próprio corpo; o questionamento sobre a normatização quanto a escolha de roupas impostas pelos pais e sociedade; e para os que entendem que todo o repertório está vinculado ao sexo, há também música sobre a superação da violência contra a mulher.
Alguns podem sentir-se ofendidos com a forma como as letras da Popozuda são construídas, ao falar abertamente sobre sexo. Mas isso não nega o fato de que também permitem a contestação e abrem uma possibilidade de revolução dos valores estabelecidos, assim como aconteceu com os palavrões que inundaram o rock brasileiro dos anos 80. Há, portanto, elementos importantes para fundamentar debates sobre o modelo social, os direitos da mulher e questões libertárias, pontos inerentes à filosofia e que permitem o pensar a sociedade.
É interessante como no Amapá, algumas pessoas acham o brega abominável, mas veem o funk como expressão cultural, enquanto no Rio, acontece o oposto. Fica a sensação de que a expressão cultural que acontece longe de nós é válida, importante e reconhecida como tal, mas aquela que ocorre em nossos territórios, sob nossas narinas... não possui absolutamente nenhum valor! Óbvio que há um elemento de dominação importante cravado nesses posicionamentos. 
Roberto da Matta diferencia dois tipos de cultura, uma grafada com o c em maiúsculo e outra em minúsculo. A Cultura estaria vinculada a uma estrutura de dominação, representaria o ideal das manifestações intelectuais e emocionais a servir de referência para todas as demais culturas "primitivas", "elementares" e "subdesenvolvidas". Mas a cultura é, por sua vez, a resistência à Cultura, pois diz respeito ao modo de viver e de pertencer a uma dada coletividade. A cultura, como conjunto das várias possibilidades de ser humano, contrapõe-se à Cultura como medida de todas as coisas. Assim, a cultura nos permite questionar o mundo, negá-lo, refazê-lo. Portanto, sim, todos temos cultura e devemos utilizá-la como mecanismos de transformação e de combate a qualquer forma de opressão.

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