sexta-feira, 2 de maio de 2014

ENTRELINHAS

Arley Costa - Professor da Unifap, Doutor em Ciências pela USP, diretor do SINDUFAP

#eunãosouhumano

Racismo mata! É coisa séria e deve ser tratada como tal. A ação de Daniel Alves de comer uma banana jogada ao campo de futebol seguida da postagem de Neymar com o filho comendo bananas acompanhado da expressão somos todos macacos é emblemática pelas discussões e reações que provocou. A ideia varreu as redes sociais e foi seguida por uma enxurrada de críticas. O ataque aos #somostodosmacacos extrapolou os limites do bom senso. Mas será que a proposta foi tão ofensiva assim? A hashtag era tão avessa aos interesses daqueles que lutam contra o racismo? Por que tanta gente que nunca esteve nem aí para o racismo se posicionou contrário ao uso do #somostodosmacacos como uma estratégia de enfrentamento dessa polêmica? 
Choveram críticas, e muitas delas com fundamentações importantes. Sim, a história iniciou com Daniel Alves e Neymar, negros, mas que por sua condição financeira vivenciam o racismo de uma forma particular bem diferente daquela enfrentada por inúmeros Amarildos e Cláudias. É fato que Neymar disse, quando ainda jogava no Santos, que não era negro e que nunca havia sofrido racismo. É verídico que o uso da banana e a #somostodosmacacos foram pensados por uma empresa de publicidade e não algo espontâneo. Mas a partir dessa jogada de marketing houve uma explosão nas redes sociais da hashtag e de fotos com gente famosa ou desconhecida segurando uma banana. Também é verdade que isso ocorreu porque, dentre os que reproduziram a ideia, havia pessoas realmente preocupadas com o racismo, a fim de entrar na febre midiática do momento, visando retorno financeiro, querendo posar de engajado, ou seja, com os mais variados interesses. 
Óbvio que se a ideia da campanha estiver limitada à imagem e a hashtag, a proposta é apenas uma gota no deserto quanto à possibilidade real de reverter as causas importantes na geração e perpetuação do racismo. Mas minimamente abriu uma discussão sobre o tema. Em qual momento desse país tanta gente, das mais variadas condições econômicas e culturais, falou sobre racismo em um mesmo período? Não seria o caso de aproveitar a febre e tentar usá-la de forma construtiva para avançar nas discussões mais de fundo das questões étnicas em nossa sociedade? Por que desperdiçar a oportunidade e optar por criticar de forma pesada a construção da #somostodosmacacos?
Algumas pessoas envolvidas com o movimento negro e ativistas pela superação do preconceito apontaram que a ação era, em si mesmo, preconceituosa e que contribuía negativamente na luta contra o racismo. Perfeito, sendo assim, de fato não é possível seguir adiante com a campanha. Infelizmente, a essência da esmagadora maioria das argumentações contrárias à proposta tem outra razão: incompreensão clara e simples e, principalmente, fundamentalismo religioso. 
No primeiro caso, por exemplo, apresenta-se a afirmação de que a possibilidade correta para gerar uma consciência de identidade racial seria a #somostodospretos ou #somostodosnegros. Mas, a ideia inicial não era o autorreconhecimento, era afirmar "somos todos iguais, eu e você que atirou a banana", portanto, incluir todos na condição de macacos, sejam eles negros, brancos, amarelos, vermelhos, racistas ou não. Sendo todos iguais, não há razão para distinção positiva ou negativa. Em nenhum momento a ideia foi afirmar que os negros são macacos como mecanismo de defesa contra o racismo. Outra proposta, a #somostodoshumanos, não surte efeito. O racista vê a si como humano e nega ao negro essa humanidade, ele vai dar de ombros pra isso e continuar a chamar o outro de macaco. Com a #somostodosmacacos, o racista também é chamado de macaco, e isso ele não quererá admitir.
Entretanto, a maioria das críticas sobre o #somostodosmacacos repousa em questões fundamentalistas religiosas. A afirmação principal de seus defensores era "eu não sou um macaco (ou animal), eu sou humano".  Os que defendem essa ideia partem da premissa de que o homem é um ser especial criado a imagem e semelhança de uma divindade e, como tal, não pode ser comparado a qualquer outro animal. Vociferam contra Darwin e sua construção científica. Dizem que não vale nada porque é uma teoria. Mas tudo em ciência que tem credibilidade é teoria! O termo teoria é utilizado para um conjunto de conhecimentos coesos capazes de explicar, pelo menos até que outra teoria a substitua, a forma como o mundo é organizado. Darwin falou em ancestralidade comum entre homens e macacos, não que aquele tenha derivado deste, muito menos que o homem é o objetivo final da evolução dos primatas. Por falar em ancestralidade comum, os seres humanos partilhamos semelhança genética com primatas (95 a 99% com o chimpanzé, dependendo do modelo utilizado), porcos, ratos, amebas, vegetais... Somos todos resultados da diversificação da vida, de forma que todos os organismos vivos partilham alguma similaridade. A compreensão de como os organismos vivos surgiram e diferenciaram-se no mundo é fantástica, pena que nas escolas encontre dificuldades em razão do fundamentalismo. As crianças já chegam fechadas a esta informação. Pior, há alunos de graduação em biologia que se negam a compreender o fio de Ariadne da ciência que escolheram como profissão. Por conta do fundamentalismo, a teoria de Darwin, apesar de toda sua relevância, é uma das mais incompreendidas na ciência. 

Lamentavelmente, esse fundamentalismo tende a aumentar e a transformar em inferno na Terra, a existência daqueles que não se dobram a ele. A tendência, entretanto, é piorar, o texto bem humorado de Eliane Brum mostra isso. (http://glo.bo/1iFFIBw). Em meio a toda essa incompreensão e resistência, que inclusive afeta a discussão sobre o racismo, vale a ironia da charge de um macaco segurando um cartaz com a inscrição: "Eu não sou 'humano'. Resolvam suas diferenças sozinhos".

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