quinta-feira, 31 de julho de 2014

ANTENADOS



 POR BARBARA COSTA



MUDANÇA

Na frente do meu prédio, esquina entre duas avenidas movimentadas, meia dúzia de cidadãos agitam bandeiras de candidatos prometendo mudanças. 
O que eu não entendo é por que alguém votaria num camarada que paga a alguns sujeitos uma quantia provavelmente insignificante a fim de que passem horas debaixo de um sol agreste sustentando uma bandeira com um número impossível de se decorar a um relance. 
Para falar a verdade, ainda que, em troca, se oferecesse uma bolada de dinheiro, quem se submeteria a essa tarde mercuriana do nordeste, a defender qualquer causa sob o sol o sol de lascar? Quem votaria em alguém que pensa ser isso uma promoção positiva e tanto? Não entendo... Deixo pra lá. 
Dentro do apartamento, começo a arrumar minhas coisas em caixas e malas. Não vou embora da cidade. Só mudar de prédio. 
Vou tirando as coisas da estante sem nenhuma pressa. Vou arrumando e ao mesmo tempo acarinhando, catalogando minhas lembranças. Primeiro os livros. Todos bonitinhos dentro das caixas. Depois os objetos inúteis e miudezas inúteis e papéis inúteis - indispensáveis e insubstituíveis. 
Estou nesse apartamento há dois anos e já acumulei lembranças. Como o tempo passa... Como os fragmentos que contêm a memória dos fatos ficam...
Nesse tempo de faculdade, ajuntei aproximadamente uma tonelada de papel. O conhecimento acadêmico se mede em xerox. E no meio disso tudo de repente encontro o livro que contém o texto que escrevi para um concurso de redação três anos atrás, ainda no ensino médio.
 Eu, com aquele texto, me pretendia tanta coisa... Não, não. A verdade é que, quando escrevi, nunca pensei que alguém pudesse achar aquilo bom. Mas escrevi com tanta sinceridade e tanto jorro verbal que talvez a vigorosa ingenuidade juvenil tenha convencido o último romântico na banca do júri que selecionou as redações para o livro.
Timidamente, sentada no chão, rodeada por caixas, começo a ler a redação... Me reconheço em alguns parágrafos, algumas construções frasais características e persistentes, o tom. Mas, no mais, não sou mais eu.
Não consigo ler o texto até o fim. Percebo os deslizes ideológico, os deslizes psicológicos, a pieguice, a honestidade literária extremamente perigosa. A menina que escreveu aquele texto não existe mais. Eu mudei. Eu já não sou ela, embora a narrativa da minha história ainda guarde muito do que fui um dia.
Mas a gente muda, o tempo passa, a gente cresce, separa os papéis... Joga fora muita coisa. Guarda algumas. Mas cada vez mais a pilha do descarte é maior que a pilha da gaveta. 
Coloco silenciosamente e um tanto embaraçada o livro do concurso dentro da caixa. Não lerei, não direi mais nada sobre o assunto. Contudo, obviamente, embora eu tenha mudado tanto, não me passa despercebido o fato de que guardei o livro. 
Me guardo dentro da caixa. Porque sempre bate uma saudadezinha do que a gente foi. Não tem mudança que supere a nostalgia. Lá fora, as bandeiras tremulam...

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