quinta-feira, 31 de julho de 2014

IJOMA



"Podemos acertar o calcanhar de Aquiles do câncer de mama", diz Funmi Olopade
por Demétrio Rocha Pereira


A médica nigeriana Olufunmilayo Olopade deixou o país natal, onde se formou na Universidade de Ibadan em 1980, para ingressar na Universidade de Chicago (Estados Unidos) e revolucionar a pesquisa sobre as origens genéticas do câncer de mama. “Funmi” se ergueu à condição de autoridade mundial em oncologia ao descobrir que mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 explicavam a alta incidência do câncer de mama entre afro-americanas.


Em 2011, o presidente americano Barack Obama a elegeu como uma de suas conselheiras para o combate ao câncer, reconhecimento que se juntou a uma coleção já plena de prêmios. Advogando a prevenção no lugar da cura e a individualização do tratamento oncológico, Funmi agora busca mediar uma rede internacional de colaboração no setor. Às vésperas de Nigéria contra Argentina no Beira-Rio, Funmi veio à Capital participar de um simpósio no Hospital da PUCRS, organizado pelo também oncologista e seu ex-aluno, Márcio Debiasi. Em entrevista a ZH, ela explicou os fundamentos da medicina de precisão, comentou a decisão de Angelina Jolie de retirar as mamas e sustentou que “o câncer não é uma sentença de morte”.


Como a compreensão das origens genéticas do tumor altera a investigação e o tratamento do câncer de mama?
Já não basta dizer “tenho câncer de mama”. Você tem de perguntar: “Que tipo de câncer de mama eu tenho?”. A tia e a mãe de Angelina Jolie tiveram câncer, o que a coloca em risco de ser portadora de uma das várias síndromes genéticas associadas ao câncer de mama. Nessa situação, é importante a avaliação de um médico capacitado para orientar a testagem genética e as melhores formas de prevenção. Ao ouvir uma paciente com câncer de mama ou de ovário, é preciso questionar que tipo de câncer ela tem. Se for genético, examine filhas e demais membros da família para identificar todas as Angelina Jolies antes que desenvolvam câncer. Eu gostaria de treinar todo oncologista para reconhecer quem tem histórico familiar e então dizer: “Esta família agora está sob os teus cuidados”. Não só trate a mãe ou o pai. Acolha e acompanhe todos os membros da família para que possa prevenir o câncer.

O Rio Grande do Sul é o segundo estado brasileiro com maior incidência de câncer de mama, e a típica paciente gaúcha costuma ser diagnosticada com menos de 50 anos. A genética pode ajudar a explicar isso?
Todos temos algo em nossas famílias, seja diabetes, asma, câncer de mama ou de cólon. Em palestras peço que se levante quem já teve câncer em suas famílias, e dificilmente alguém fica sentado. É uma doença do envelhecimento, fácil de aparecer com a idade. Mas há pacientes muito jovens, e é importante sabermos o porquê. Os judeus asquenazes, sejam os deste país ou de Israel, precisam saber da sua predisposição. Quando falamos de um estado onde uma parcela importante das mulheres tem câncer de mama antes dos 50 anos, identificamos que é possível haver uma predisposição genética. Foi identificada, por exemplo, uma mutação no gene TP53 muito comum na área que vai de Porto Alegre ao Rio de Janeiro. Um trabalho coordenado pela Dra. Patrícia Ashton-Prolla (UFRGS/HCPA) e o Núcleo Mama Porto Alegre, com cerca de 9 mil pacientes da periferia da cidade, mostrou que cerca de 6% das mulheres que consultam em unidades do Saúde da Família tinham histórias sugestivas de risco genético de câncer.


Desde novembro do ano passado, devido a uma portaria do Ministério da Saúde, o governo não cobre mais mamografias para mulheres de até 49 anos. O que a senhora acha disso?
As pesquisas nos EUA, na Europa e no Canadá sempre levaram em conta mulheres de origem europeia. Quando digo que a mamografia começa aos 50, ficam de fora as asiáticas, as latinas, as africanas. Não fizemos a pesquisa, não podemos colocar tudo no mesmo saco. Por isso falamos em medicina personalizada. E o problema fica mais complexo com a miscigenação. A genética é poderosa, mas apenas aponta para um lugar. Ela interage com o ambiente. As italianas do Brasil são iguais às da Itália ou mais parecidas com as demais brasileiras? Se você não conhece o problema da sua população, você não saberá resolvê-lo. Se a média de idade das pacientes é 48 anos e você pede mamografia aos 50, como isso vai funcionar? Não funciona. Os médicos daqui estão prontos para trazer evidências para o debate. Juntem os pesquisadores, estudem os dados e tracem uma política.

Temos estudos indicando que 75% das pacientes brasileiras descobrem o câncer de mama quando o tumor já está em fase avançada. Nos EUA, o índice é de cerca de 20%. Como mudar o nosso cenário de diagnóstico tardio?
Tivemos esse problema nos EUA, não conseguimos prover mamografia para todo mundo. Precisamos de ideias inovadoras. Não cometam o mesmo erro que os EUA e outros países cometeram por 30 anos. Podemos pular degraus, desenvolver outras estratégias de escaneamento. Um simples exame de sangue pode identificar se alguém tem risco superior à população em geral. Passamos do ponto de gastar todos os esforços pensando apenas em mamografia. O Brasil deve pular etapas, buscar as melhores tecnologias e garantir que cada mulher tenha o seu risco avaliado e condições de prevenção.

A Corte Suprema americana derrubou patentes sobre genes ligados ao câncer de mama pouco depois da mastectomia de Angelina Jolie vir a público. Até que ponto famosos podem ajudar ou atrapalhar essa construção de políticas para a saúde?
A presidente do Brasil é uma sobrevivente do câncer. Isso, em si mesmo, deveria ser a cara do que o câncer pode ser para todos, para cada família neste país. Após os casos de Mrs. (Betty) Ford (primeira-dama de Gerald Ford) e Mrs. (Nancy) Reagan (primeira-dama de Ronald Reagan), toda americana percebeu que, se mulheres do presidente podem ter câncer de mama, é melhor fazer algo a respeito. O trabalho da Dra. Prolla foi financiado pela fundação Susan G. Komen, iniciada pela irmã de Susan, Nancy Brinker, que vivia em uma cidadezinha do Illinois e prometeu à irmã que nenhuma mulher jamais passaria pelo que ela havia passado. Onde você vive não deve determinar se você viverá ou não após o diagnóstico do câncer de mama. Como um trabalho no Brasil foi financiado por Susan G. Komen? Mulheres marchando, pedindo, militando. Angelina disse, na Suprema Corte, que a genética importa. No Brasil também importa.

A senhora também criticou a atitude de Angelina. Por quê?
Há diferentes formas de revelar as coisas. As notícias nos EUA giram sempre em torno de celebridades. É uma sociedade voltada para as celebridades. Fazemos testes genéticos desde 1994, quando os genes BRCA1 e BRCA2 foram identificados, e já sabíamos o que fazer e como fazer. A maior parte das mulheres não precisa passar pela retirada das mamas. Mas, como todo mundo em Hollywood faz cirurgia plástica, é muito fácil dizer “mesmo não tendo câncer, tirei os meus seios, havia risco”. Na verdade, seria mais importante que ela tivesse retirado os ovários, o que só vai fazer agora. Mas, por agenda política, esperávamos uma decisão da Corte Suprema que ela influenciou ao vir a público, e agora mais pessoas podem fazer pesquisa genética. Como celebridade, ela ajudou o processo. Mas, para as mulheres nas ruas, sem dinheiro para cirurgia plástica nem acesso a testes genéticos… Sempre que você tem esse tipo de desigualdade na sociedade, vemos a importância da saúde pública.

Por que a maioria das mulheres com risco de desenvolver o câncer de mama não precisa passar pela mastectomia?
A probabilidade de ter câncer se você tem o BRC1 é de 40% até 87%. Uma grande margem. Essa é a beleza do corpo humano. Para o câncer de ovário, a probabilidade é de 11% a 40%. Quando converso com minhas pacientes, digo que, mesmo com a mutação, elas têm pelo menos 60% de chances de não desenvolver câncer.

Essa compreensão da origem genética do câncer ainda é pouco difundida?
Descobrimos que o entendimento sobre genética, mesmo entre médicos, é bastante limitado. Isso porque a Medicina Genética por muitos anos permaneceu focada em crianças nascidas com defeitos congênitos. Mas o Projeto Genoma Humano e outros trabalhos já foram feitos. Chegamos à base fundadora de toda doença, seja o diabetes ou a pressão alta. São interações entre os genes e o ambiente. O problema é que os EUA declararam guerra ao câncer. Muitos estudaram o fenômeno do câncer por centenas de anos, e bolamos diferentes estratégias para combatê-lo, sempre declarando-lhe guerra. Agora sabemos que éramos ignorantes. Entendendo a base genética, podemos acertar o calcanhar de Aquiles do câncer e matá-lo ou evitá-lo.

Já existe algum caso bem-sucedido?
Minha mentora, Janet Rowley, passou décadas avisando que o câncer é uma doença genética e sugerindo a descoberta dos genes envolvidos. Quando fui trabalhar com ela, em 1987, ela ainda tentava convencer as pessoas. Começamos a progredir e descobrimos que uma droga chamada Glivec, identificadas as raízes genéticas da leucemia mieloide crônica, poderia ser usada para matar a doença. Hoje qualquer pessoa com os genes para esse tipo de leucemia pode tomar uma pílula e mandar o câncer embora. Você pode viver a sua vida sem que ele te afete. O desafio com as companhias farmacêuticas é o tempo até que os remédios cheguem no mercado as patentes, que inviabilizam a compra na maior parte dos países. Estamos trabalhando com empresas farmacêuticas para criar uma força de trabalho global para levar remédios mais rápido para o mercado e a preços mais acessíveis.

Como a medicina de precisão vai impactar a prescrição de medicamentos?
Medicina de precisão tem a ver com prescrever a droga certa para o paciente certo na hora certa. Precisamos usar tecnologias de ponta para definir o perfil molecular do tumor para tratá-lo com a droga certa. Como dito antes: não basta dizer “esta paciente tem câncer de mama”. É preciso saber o tipo. Se a paciente precisa de quimioterapia, ela recebe quimioterapia. Mas o perfil molecular do tumor pode mostrar que ele não é sensível à quimioterapia, mas a uma pílula mais barata e praticamente sem efeitos colaterais. Neste momento, os médicos receitam por tentativa e erro. No futuro, saberemos quais remédios geram reações adversas e não devem ser prescritos para cada paciente. Muitas pessoas hoje morrem por reações adversas a remédios, e em lugares onde elas morrem subitamente, por falta de informação, elas desconfiam dos médicos. A cloroquina, usada para tratar a malária na África, gera reações adversas em muitas pessoas, que acabam amedrontadas.

A senhora descobriu que mutações nos genes BRCA são mais comuns em afro-americanas. Como encarar o desafio de estudar as particularidades genéticas de diferentes raças sem fortalecer a discriminação racial?
Sempre que há um estigma com uma doença, nenhum grupo quer se associar a ela. A Angelina Jolie é judia. Quando começamos a fazer testes genéticos, costumávamos ir a igrejas e comunidades para saber o que achavam. Uma mulher judia nos disse que os judeus abraçam a ciência e seriam os primeiros curados. Essa é a atitude deles. Mesmo com o sofrimento da discriminação, querem pesquisa genética, porque têm orgulho, reconhecem a sua etnicidade. Grupos étnicos preferem não ser discriminados por causa do passado de racismo e de exploração. Não querem gente os categorizando como isso ou aquilo. E acho que o Brasil tem o mesmo problema com o racismo que têm os EUA e outros lugares. Sempre que um grupo é marginalizado, ele se torna o mais pobre, e fica difícil engajá-lo na pesquisa genética. Deve-se advogar a justiça genética. Somos todos afortunados por sermos como somos.

E quanto à eugenia e o receio de que, no futuro, a Medicina conseguirá programar o DNA, excluindo genes “indesejados”?
Meu marido é eticista. Tivemos quatro eticistas e um psicólogo no workshop. Sempre que se fala em genética, ouvimos que vão manipular a raça humana e brincar de Deus. Quando o Projeto Genoma Humano começou nos EUA, 5% da verba foram enviados para estudos sobre as implicações éticas, legais e sociais do trabalho. São 5% de US$ 5 bilhões. Falamos com rabinos, fomos a igrejas, engajamos comunidades. Se a comunidade não está engajada nem informada, ela se amedronta com a pesquisa. Michelle Obama foi vice-presidente de Engajamento Comunitário na Universidade de Chicago, e nós visitávamos as comunidades para falar sobre os benefícios do que fazíamos na academia. A comunidade tem de fazer parte.

Quanto mais conhecemos a genética, menos a interpretamos de forma determinística?
A genética permite que, ao saber o seu risco, você possa modificá-lo, para que ele não se manifeste. A preocupação mais frequente tem a ver com evitar ter filhos para não passar genes adiante. Mas a genética nunca trabalha em isolamento. Se você carrega o dom de se tornar um pianista de concerto, mas nunca pegou um piano para tocar, não irá expressar esse talento. Muita gente vive bastante tempo com a mutação da Angelina Jolie sem nunca ter câncer. A questão é: por quê? Temos uma rede global estudando portadores de mutações. São cerca de 40 mil pessoas do mundo inteiro, mas ainda poucos da América do Sul e da África. O meu papel é formar essa rede global no sentido de haver uma colaboração sul-sul.


A senhora já disse que, tivesse de optar entre ser uma cientista no laboratório ou ajudar pessoas, ajudaria as pessoas. A realidade da Nigéria e o ofício de pastor anglicano do seu pai ajudaram a moldar essa postura?
Com certeza. Às vezes as pessoas pensam que a religião deve ficar separada da ciência. Meu pai era pastor na Nigéria, e crescer com ele me fez perceber que, quando as pessoas não têm acesso à saúde, elas recorrem a Deus. São pobres, não têm nada, apenas Deus pode ajudá-las. Assim que adquirimos conhecimento, o que a elite chama de “esclarecimento”, tendemos a esquecer Deus. O meu pai queria que eu fosse médica porque não compreendia o que acontecia com as pessoas, então rezava a Deus. Agora sou uma cientista, sei que a ciência pode me ajudar a cuidar melhor dessas pessoas. Mas precisamos que confiem em nós como cientistas. Costumo dizer a meus pacientes: “Reze a Deus para que Ele me dê sabedoria para cuidar de ti.” Podemos unir as duas coisas. Há muitos católicos no Brasil, um jesuíta agora é Papa, e sabemos que jesuítas acreditam no conhecimento. Quanto mais as pessoas forem educadas, mais conseguirão ajudar umas as outras.

No Brasil há pouca resistência à ideia de um sistema público de saúde. Estamos mais preocupados com o funcionamento do sistema do que com a existência dele. Nos EUA, em contraste, “acusaram” o presidente Barack Obama de estar implantando o socialismo por tentar fortalecer esse serviço... 

Estamos lutando por saúde no sistema público. Apenas começamos a experimentar, temos muito a aprender com vocês. O Brasil e o Chile, ao menos na América Latina, agora dizem: “Nosso sistema de saúde precisa funcionar”. Eu adoraria aprender com vocês. Quero fazer genética com o Affordable Care Act. A Dra. Prolla já fez isso no sistema público do Brasil. Se ela conseguiu, devemos usar essa inovação para fazer ainda melhor e mais barato, colaborando com ela para aprender como ser mais eficiente, fazer mais com menos dinheiro. Os americanos rejeitam a saúde pública porque ela é cara demais, e acham que reforçá-la pode nos levar à falência. Mas isso não tem nada a ver com o Affordable Care Act. Vejo oportunidades de aprender com o Brasil e do Brasil aprender com os EUA. Vocês estão à nossa frente, porque nos EUA você fica sem amparo se não tem seguro - e 40 milhões de pessoas não têm. Os médicos sabem que não querem atuar dessa forma. É bastante político, mas é assim quando vivemos em sociedade.

Quanto à Medicina de precisão, o que Brasil e EUA podem aprender um com o outro?
Os EUA são um país de imigrantes, e a população do Brasil foi preenchida por imigrantes vindos de todas as partes do mundo. Há lições que podemos tirar de cada país, e pode haver muita parceria para entender problemas que as pessoas de origem não-europeia têm. Enviei um relatório para o NIH dizendo que há incríveis jovens médicos no Brasil. Temos de pedir ao governo brasileiro que invista no futuro deles e na construção de grupos de pesquisa. É muito importante que colaboremos e façamos pesquisa em parceria. É por isso que estou aqui.



O Brasil no mapa da Medicina de Precisão
Se o câncer resulta da interação dos genes com o ambiente, de pouco serve que países aceitem às cegas as descobertas uns dos outros. Daí que Márcio Debiasi, oncologista do Hospital São Lucas (PUCRS) e do Instituto do Câncer Mãe de Deus, tenha passado um ano com Olopade em Chicago, capacitando-se para destrinchar os cânceres daqui.

- Temos uma enorme lacuna entre as evidências científicas e a possibilidade de aplicá-las, especialmente na saúde pública. Precisamos de financiamento e ciência local - diz Debiasi, acrescentando que não é preciso “tirar sangue de toda e qualquer brasileira”, mas sim “identificar pacientes com mais risco, como quem teve câncer de mama na juventude ou na família”:

- Todo câncer surge de genes mutados. Quanto mais você expõe o seu genoma aos agentes que podem mutá-lo, pior para você. E, se você recebeu de seus pais genes já mutados, aumenta o risco. Podemos achar essas famílias, mas o único jeito é dar acesso às pessoas, conversar com elas e investigar - sustenta.

Sobre a avaliação de risco por meio de teste genético, o oncologista esclarece que se trata de um exame de sangue comum. A diferença está na análise da amostra.

- A ANS obriga os planos de saúde a darem cobertura para esses testes, de tal forma que eles são acessíveis para usuários da saúde suplementar após consulta com profissional especialista na área - informa o médico.

O custo aproximado dos exames depende do laboratório, podendo variar entre R$ 3 mil e R$ 10 mil.

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