A
angústia do poeta ambidestro
Assim que
começou a alfabetizar-se nas primeiras letras, sua habilidade mostrou-se logo
concentrada na mão esquerda. A mãe, ao perceber que o filho corria o risco de
vir a se tornar canhoto, prontamente traçou planos tirânicos para cortar o mal
pela raiz!
Não
queria um filho canhoto: aquilo não era certo, era indício de coisa ruim, de
viver ao contrário, de fazer os opostos da vida. Não podia. Forçou o garoto a
usar a mão direita, tanto para escrever quanto para todo o resto. E a cada vez
que ele se esquecia por um instante de que era a mão direita, a mão direita!, a
mão direita a ser usada, lá estava ela, a mãe, com uma bronca, às vezes o
cinto, puxões de orelha, safanões leves. O menino logo aprendeu.
Aprendeu
a ocultar a mão esquerda, já que não podia amputá-la. Obviamente, com bastante
frequência, não conseguia controlar-se. Então fazia escondido, usava a maldita
mão, a mão torta, a gauche. Às vezes mesmo até chegava a apanhar os gizes de
cera na mochila e ensaiar as maiores peripécias canhotas contra as paredes de
seu quarto, mas acabava mesmo era no chão, debruçado sobre folhas de papel,
riscando e pintando os cadernos com a mão esquerda marginal, em segredo. A mãe
não via, é claro, e assim, passado um tempo, se convenceu de que o mal estava
remendado: o filho não era canhoto.
Mas o que
aconteceu mesmo é o que menino acabou simultaneamente alimentou as mesmas
habilidades manuais tanto para a direita quanto para a esquerda: tornou-se
ambidestro. Quando se deu conta disso, inundou-lhe um estranho sentimento
misturado. Era alegria, orgulho, medo, censura. Não sabia muito bem o que fazer
com o talento recém-descoberto, trazido à tona por uma professora, anos depois
de ele ter pegado pela primeira vez num lápis, com a mão esquerda. A
professorinha do momento, ao vê-lo alternar as mãos na hora de escrever o
ditado, logo notou: canhoto consertado, que não se consertou. Pelo menos agora
tinha as duas mãos boas! (Mais ou menos...).
Revelada
a façanha de sua vida, a dupla cidadania de mãos, a vida do menino seguiu sem
maiores sobressaltos e os gizes que usara na infância, ameaçando tragédias
gregas contra as paredes da casa, sem cumpri-las, foram, na adolescência,
naturalmente trocados pela pena de escritor. Ele começou a demonstrar
certas afeições por compor versos, mas achou melhor não revelar a ninguém.
Tinha medo também de que lhe forçassem a largar aquele ofício, tal qual fizeram
com sua mão.
No
entanto, quando estava sozinho, no quarto, debruçado sobre a escrivaninha,
escrevia. Escrevia muito, e escrevia com a mão esquerda. A letra era esbelta e
alongada, deslizante, leve. Escrevia com liberdade, escrevia para libertar-se
da tirania de um mundo destro. E, mesmo nesses momentos de total frouxura, lá
estava, estava ela, a mão direita, a verdadeira maldita!
E lhe dizia:
assim não está bom, não é assim que se escreve, corte o adjetivo, tire o
acento, não há mais hífen ali, e essa vírgula mal colocada, nada de pleonasmos,
corte as metáforas excessivas, deixe o texto mais enxuto, reduza os parágrafos,
não fale de pieguices...
Maldição,
maldição! Aquela mão direita que não se calava...! Toda vez que a esquerda
tentava executar algo de primoroso, de soberbo, grande ou mesmo finissimamente
singelo, ali estava ela, a crítica coesa e limpa da irrepreensível mão direita.
O menino sofria, dividido. E ela, a mão corretíssima, cega. Não deixava o
menino errar. Não deixava o menino ser gauche na vida!
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