sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

ANTENADOS

A angústia do poeta ambidestro
Assim que começou a alfabetizar-se nas primeiras letras, sua habilidade mostrou-se logo concentrada na mão esquerda. A mãe, ao perceber que o filho corria o risco de vir a se tornar canhoto, prontamente traçou planos tirânicos para cortar o mal pela raiz!
Não queria um filho canhoto: aquilo não era certo, era indício de coisa ruim, de viver ao contrário, de fazer os opostos da vida. Não podia. Forçou o garoto a usar a mão direita, tanto para escrever quanto para todo o resto. E a cada vez que ele se esquecia por um instante de que era a mão direita, a mão direita!, a mão direita a ser usada, lá estava ela, a mãe, com uma bronca, às vezes o cinto, puxões de orelha, safanões leves. O menino logo aprendeu.
Aprendeu a ocultar a mão esquerda, já que não podia amputá-la. Obviamente, com bastante frequência, não conseguia controlar-se. Então fazia escondido, usava a maldita mão, a mão torta, a gauche. Às vezes mesmo até chegava a apanhar os gizes de cera na mochila e ensaiar as maiores peripécias canhotas contra as paredes de seu quarto, mas acabava mesmo era no chão, debruçado sobre folhas de papel, riscando e pintando os cadernos com a mão esquerda marginal, em segredo. A mãe não via, é claro, e assim, passado um tempo, se convenceu de que o mal estava remendado: o filho não era canhoto.
Mas o que aconteceu mesmo é o que menino acabou simultaneamente alimentou as mesmas habilidades manuais tanto para a direita quanto para a esquerda: tornou-se ambidestro. Quando se deu conta disso, inundou-lhe um estranho sentimento misturado. Era alegria, orgulho, medo, censura. Não sabia muito bem o que fazer com o talento recém-descoberto, trazido à tona por uma professora, anos depois de ele ter pegado pela primeira vez num lápis, com a mão esquerda. A professorinha do momento, ao vê-lo alternar as mãos na hora de escrever o ditado, logo notou: canhoto consertado, que não se consertou. Pelo menos agora tinha as duas mãos boas! (Mais ou menos...). 
Revelada a façanha de sua vida, a dupla cidadania de mãos, a vida do menino seguiu sem maiores sobressaltos e os gizes que usara na infância, ameaçando tragédias gregas contra as paredes da casa, sem cumpri-las, foram, na adolescência, naturalmente trocados pela pena de escritor. Ele começou a demonstrar certas afeições por compor versos, mas achou melhor não revelar a ninguém. Tinha medo também de que lhe forçassem a largar aquele ofício, tal qual fizeram com sua mão.
No entanto, quando estava sozinho, no quarto, debruçado sobre a escrivaninha, escrevia. Escrevia muito, e escrevia com a mão esquerda. A letra era esbelta e alongada, deslizante, leve. Escrevia com liberdade, escrevia para libertar-se da tirania de um mundo destro. E, mesmo nesses momentos de total frouxura, lá estava, estava ela, a mão direita, a verdadeira maldita!
E lhe dizia: assim não está bom, não é assim que se escreve, corte o adjetivo, tire o acento, não há mais hífen ali, e essa vírgula mal colocada, nada de pleonasmos, corte as metáforas excessivas, deixe o texto mais enxuto, reduza os parágrafos, não fale de pieguices...
Maldição, maldição! Aquela mão direita que não se calava...! Toda vez que a esquerda tentava executar algo de primoroso, de soberbo, grande ou mesmo finissimamente singelo, ali estava ela, a crítica coesa e limpa da irrepreensível mão direita. O menino sofria, dividido. E ela, a mão corretíssima, cega. Não deixava o menino errar. Não deixava o menino ser gauche na vida!


Nenhum comentário:

Postar um comentário

ARTIGO DO GATO - Amapá no protagonismo

 Amapá no protagonismo Por Roberto Gato  Desde sua criação em 1988, o Amapá nunca esteve tão bem colocado no cenário político nacional. Arri...