PROGRESSO DE DOIS GUMES
Ao chegar a Macapá, nessas últimas
férias, não me empolguei muito quando ouvi falar da construção da rodovia que
interliga a zona norte à zona sul da cidade. Não enxergava a necessidade
imediata ou aplicabilidade da obra. De certo modo, a coisa toda até me cheirava
a mais um projeto faraônico que entraria para uma lista de ‘elefantes brancos’
que o Brasil já coleciona.
De maneira meio preguiçosa, toda vez
que o assunto vinha à tona, eu refletia um pouco mais sobre as vantagens da
rodovia. Há três pilares fundamentais que acabaram por me convencer da
conveniência do projeto: a mobilidade urbana, uma vez que existia mesmo a
necessidade de integrar duas partes da cidade que viviam em diálogo, mas que se
encontravam em considerável distância; a questão do investimento em
infraestrutura, já que nosso Estado carece de qualquer atenção mais demorada
nesse quesito; e, em última instância, ensaiando aqui uma romântica teoria de
comunhão entre estratos sociais, seria possível pensar na rodovia como uma
ponte entre duas classes econômicas, aquela mais tradicional, bem assentada, e
uma outra que procura seu espaço, abrindo caminho à força.
De todo modo, Macapá pode não ser uma
capital tão buliçosa ou latejante quanto as outras capitais brasileiras, mas é
bem verdade que, a seu ritmo, ela também se expande, se alastra pelas
periferias, cria satélites, e já era tempo de se interligarem os arredores ao
miolo, tornando-a um pouco mais coesa.
Assim, a rodovia terminou de me
convencer de sua causa quando de fato passei por ela. Eu estava a caminho da
localidade do Ariri, com tios, e no carro fomos observando a paisagem e
comentando a obra. Como moramos no ramal da Ilha Mirim, a rodovia se mostrou mesmo
uma mão na roda.
Muitos, sobretudo os moradores dos
bairros da zona norte, já há alguns anos faziam o trajeto que corta o terreno
da Infraero e desponta bem ali no ramal, embora até então a trilha não passasse
de um labirinto muito pouco seguro, bastante isolado (e por isso mesmo até
usado como local de execução e desova). E não houvesse ainda qualquer asfalto
ou demarcação muito clara do caminho. A rodovia enfim oficializou a estrada que
já era amplamente utilizada.
Agora, como vantagem excepcional, a
travessia sobre a via, é um espetáculo aos olhos. Quer dizer, à exceção da
melancólica constatação da grama esturricada e ressequida e das mudas no
meio-fio que morrem devido a este verão interminável e à ausência de rega
constante - que deveria ser garantida pelo governo junto à empresa que
provavelmente ganhou a licitação de responsabilidade pelo paisagismo da área.
Mas, bem, quero crer que, quando
começarem de vez as chuvas, o verde do meio-fio voltará a vicejar. E, com
sinceridade, esse pedaço de natureza planejada é um tanto dispensável, porque a
natureza real ao redor da estrada dá conta de estupefar os tripulantes dos
carros que cruzam a via. O asfalto lisinho e a linha quase interminável dos
postes esguios se perdem no horizonte e se fundem à paisagem de floresta e
lagoa ao redor.
A lagoa, sim! A bela Lagoa dos
Índios... Sobre ela, enfim, repousa agora aquela que se tornou uma das minhas
maiores preocupações em relação a esta rodovia. Ao cruzá-la pela primeira vez,
já estava eu me empolgando com a beleza do cenário, e concluindo que
contemplá-la só era mesmo possível agora graças à construção da estrada, quando
me dei conta de que, para dar seguimento ao trajeto da Norte-Sul, foi preciso
aterrar uma porção gigantesca da Lagoa dos Índios.
O volume de água foi quebrado ao
meio, isto porque uma montanha de terra, sobre qual se ergue o asfalto, agora
serve de empecilho e obstrução para o que antes era fluxo natural da água,
embora ela não corresse ali como se corre um rio. Como ficará a biodiversidade
do lugar? Haverá impacto sobre o equilíbrio da vida ali?
O incômodo em relação à obra voltou a
me abater. Obviamente, uma construção daquela grandeza não se concretiza sem as
devidas fiscalizações e autorizações ambientais. Acredito mesmo que a obra tenha
sido observada por órgãos responsáveis. Mas, em se tratando de Amapá... Fico me
perguntando se não há corrupção atropelando o manter segura a área verde.
O paredão de terra despejado sobre a
lagoa me parece a metáfora palpável e aflitiva do tipo de progresso que se
financia no país. Abrimos mão do meio natural de maneira um tanto leviana na
tentativa de forjar uma infraestrutura minimamente decente. Todavia, a
negligência para com a preservação ambiental depois cobra seu preço, e este
discurso não é demagogia.
No Brasil mesmo, e em vários Estados
a população já brada contra os gestores que saem derrubando as últimas árvores
para se construírem mais prédios e viadutos. É evidente que diante da expansão
cada vez mais frenética das cidades, precisa-se dar suporte à vida da população
com estruturas adequadas. Mas quão adequado é minar o natural para que o
artificial se construa (e acabe assim nem conseguindo se manter?).
Hoje, o Amapá se ufana por ser um dos
estados mais conservados, com sua área florestal quase toda intacta. É claro,
somos muito pouco "desenvolvidos", e o que nos sobra em mata ainda é
mata porque não foi transformada em urbe, e nem há o interesse, já que
parecemos insignificantes para muitos. Entretanto, o nosso arbítrio ainda é nosso.
E estamos, portanto, diante de uma escolha: é progresso ou preservação o que
queremos?
O mais profundo desse questionamento,
contudo, é perceber que tal escolha torna-se sempre cilada. Não é possível
preservar sem engessar, não é possível progredir sem que se estrague e devore?
Parece que não. O Brasil não sabe desenvolver. Reproduzimos velhas práticas,
todas falidas. Diante desse progresso de dois gumes, em que a gente mata ou
morre -- mas de qualquer jeito acaba mesmo é morrendo --, me sinto
desavergonhadamente levada a escolher a lagoa, a lagoa! Antes de toda e
qualquer rodovia. Fico com a lagoa, ainda que, sem asfalto, eu não possa
atravessá-la. Para isso, afinal, existem as canoas.
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