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CARNAVAL E A BELEZA DAS GREVES
A
Beija-flor, campeã do carnaval 2015 do Rio de Janeiro, já levou à passarela do
samba diversos enredos, entre eles o Amapá (2008), o mundo mágico das
maravilhas (1980) e a importância da contestação e da luta coletiva com “O povo
conta sua história: ‘saco vazio não pára em pé’ – a mão que faz a guerra faz a
paz” (2003). Em 1989, com “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, um desfile
impactante e inovador, Joãosinho Trinta construiu uma belíssima apresentação
que entrou para a história dos carnavais ao fazer um desfile a partir da
miséria do lixo e dos restos. O enredo mostrou que o grande rei da folia é o
trabalhador cotidianamente explorado que durante o período momesco
transforma-se, transcende as misérias da vida e faz a festa acontecer.
Em
2014, o lixo voltou à cena como elemento central do carnaval no Rio de Janeiro,
não cantado no samba, mas empilhado em ruas e avenidas. A fortíssima greve dos
garis daquele ano fez com que toneladas de lixo estivessem espalhadas pela
cidade sem que a coleta fosse feita. Os odores das ruas incomodavam as narinas
e o espaço tomado pelos detritos fazia com que os brincantes ficassem ainda
mais amontoados. Apesar disso, o carnaval seguiu e os foliões divertiam-se
enquanto criticavam ora os garis em greve, ora os governantes que não atendiam
as reivindicações dos trabalhadores nem conseguiam resolver a situação por um
caminho alternativo. Encerrados greve e carnaval, os garis conseguiram uma
vitória significativa para seus vencimentos e condições de trabalho.
Um
ano se passou e veio o carnaval de 2015, desta vez sem greve de garis.
Entretanto, outras manifestações como o fechamento e travessia da ponte
Rio-Niterói pelos funcionários do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro
(COMPERJ) e greves vem acontecendo dentro e fora do período do carnaval.
Embates recorrentes vêm ocorrendo, por exemplo, entre governadores e prefeitos
com os professores por questões salariais, condições de trabalho e de planos de
carreira. No Amapá não foi diferente e a derrota do então governador nas
últimas eleições é atribuída principalmente à posição de intransigência durante
as negociações com os professores em greve.
Neste
ano, as toneladas de lixo que se seguiram à passagem das escolas, blocos e
brincantes eram, posteriormente recolhidas com maior ou menor rapidez,
dependendo do lugar onde estavam largadas. Os garis voltaram a ser parte
integrante do carnaval restabelecendo, na medida do possível, a condição de
higiene das vias públicas. Mas o carnaval carioca de 2014, com suas montanhas
de lixo, deixou marcas e era constantemente recordado por diversas pessoas.
Alguns criticando, outros dizendo que “o carnaval da greve dos garis foi
lindo!”. Mas como pode uma greve e um carnaval em meio ao lixo serem lindos?
Aqueles
que denominam linda uma cidade com greve e carnaval entre montanhas de entulho
e lixo são exatamente os que conseguem enxergar além da aparência. Rompendo a
casca do ilusório, vão ao âmago, à essência das coisas. Conseguem enxergar que
a greve, a manifestação, a tomada da ponte, o lixo não coletado são expressões
da luta de quem decidiu combater a exploração a que está submetido. Essas
pessoas rasgam a imagem imediata do transtorno e dos prejuízos, que a mídia
hegemônica faz questão de repetir à exaustão para que vejamos apenas isso, e
vislumbram um processo de transformação, de resgate de humanidade, de busca de
uma vida que mereça ser vivida.
Enxergar
movimentos de contestação como beleza não é fácil, pois somos criados
(treinados mesmo!) para encará-los apenas como o furdunço de vândalos e
baderneiros inconsequentes que não têm o que fazer. Os mais bem domesticados
pela visão conservadora e retrógrada, ao passar por uma greve, gritam algo do
tipo: “Vão trabalhar, bando de vagabundos!”. Os que berram torpemente tamanho
impropério fingem não saber o que realmente ocorre ou, pior, estão tão cegos
por todo o processo de dominação a que foram expostos que são incapazes de
perceber que greves e manifestações são movimentos de quem trabalha (e muito!)
pelo reconhecimento de seu esforço e labuta diária. Lutas que vêm justamente
reivindicar a valorização de um trabalho permanentemente explorado e
expropriado.
Ser
capaz de romper com a ilusão das sombras e enxergar o real, como no mito da
caverna de Platão, envolve um esforço considerável. Mas é possível fazê-lo e
enxergar a beleza da luta, seus impactos e resultados. Na greve dos garis de
2014, algumas pessoas conseguiram enxergar as pilhas de lixo como instalações
artísticas sensoriais capazes de promover intervenções urbanas. Uma ‘não-arte’
mais arte que a arte-arte capaz de chocar e interagir com o público. O lixo, a
miséria e a luta vistos não como empecilhos, mas como eventos artísticos e
belos capazes de fazer pensar e levar a um mundo melhor. Precisamos aprender
com o histórico enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” e ver o que nos
incomoda com outro olhar. Se rompermos com o aparente, seremos capazes de ver
as greves em sua beleza, pois são, nas palavras do enredo da Beija-flor, alegria e
manifestação.
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