sexta-feira, 6 de março de 2015

ANTENADOS - BARBARA COSTA



Retalhos de existência

Tem gente que a gente cultiva em segredo, ou quase isso. Que a gente pensa de tempos em tempos. Que, só assim, de ter aqui e ali, impregna a nossa alma. O contato não foi muito grande ou não é, mas marcou, e fica o eco para sempre.

A gente quer saber o que a pessoa pensa sobre aquele filme e qual foi o último romance que leu, mesmo que não fale com ela há anos. A gente ouve as mesmas bandas que a pessoa gosta, só pra se sentir mais perto. A gente lembra do riso, da voz. A gente segue os passos dela em silêncio, a distância. Conhece cada detalhe. Coisa mesmo de psicopata, mas com meiguice.

E a gente cita a pessoa em outras conversas, e rouba frases, sorri de si mesmo e nessa malandragem faz uma alma se mesclar à outra, alquimista discreto. São afetos inconfessos. Não precisa. Estão aí, e são, e se bastam. Pessoas que ajudaram-nos a construir quem somos, mesmo que nem tenham sabido.

E ficam em nós as lembranças. Um churrasco na madrugada do primeiro dia do ano, depois que todos já se recolheram, e a chuva que cai de repente, e todos ainda conversam e riem, sem se importar.


E uma outra noite, dentro de um carro, três almas amigas vivem sem pressa, a não ser para falar, querendo fazer perdurar o momento, enquanto organizam numa lista infinita os motivos pelos quais se ama Charlotte Gainsbourg.
E uma florzinha dada a caminho de um lugar sem importância, o que importava era a companhia, e depois evaporou-se o tempo, mas a florzinha ficou, imprensada dentro de um livro de capa dura.
São pedaços de vida que se fincam, obstinados. Retalhos. É um pouco triste pensar nas lembranças, porque nos remetem a coisas que já passaram, irrepetíveis, terminadas. Mas também acalenta: percebe-se que se viveu uma vida lotada de significância.
Tive eu a minha quota, cada uma à sua maneira, de pessoas como essas, que passam pela nossa vida feito um trator e marcam o coração a fogo.
A amiga que naquela tarde tocou para mim o violino, aparecendo de surpresa na porta do prédio depois da aula de música. Tínhamos 13 anos.
Amigos que compuseram-me versos, me rechearam de ideias, me ensinaram palavras bonitas, me apresentaram às músicas da minha vida, me mostraram mil coisas.
Professores que nunca duvidaram, nunca subestimaram, nunca se privaram de ensinar também afeto.
São a minha bagagem. Naveguei. Deixei umas dezenas de gentes, a quem quis tanto, para trás, nos portos, em outros mares. Mas nunca deixei na verdade ninguém. Trouxe todos os que pude comigo. Perdi alguns, sem jamais perder.
Uma coisa bonita na vida é saber que tudo vem e vai, mas as memórias bonitas não se perdem nunca. São objetos seus. De tão reais, quase palpáveis. Retalhos que fazem o todo. E você se torna assim um cheio de alheios, mas que é todo seu.

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