Uma crônica de vazios
A
protagonista desta crônica não tem nome, tem pressa. Atravessa a rua no passo
de alguém que sabe que tem de chegar, e tem de chegar logo, embora não saiba
aonde, nem como, ou por quê. Vai afogueada, manhã chuvosa. Se encharca inteira,
o ônibus não para. O próximo vai lotado. Espera ainda o terceiro, exasperada,
desesperada. Respira fundo, recobra a fachada da calma. O guarda-chuva emperrou
na saída do portão, de modo que teve mesmo de encarar os grossos pingos d'água
no escudo da cara. O penteado já era. Parada de ônibus abarrotada. Outros mais
se achegam. Conversas paralelas, triviais, reclamações de sempre.
A
protagonista ouve alguém falar da terceirização, a tal terceirização, o
fantasma da terceirização. Uma lei, uma lei sendo votada, um projeto? Franze a
testa. Tenta ouvir um pouco mais, mas os comentários são superficiais, não lhe
dão margem para aprender qualquer coisa. No trabalho, o assunto é o mesmo.
Quando comentam com ela, sem contudo perguntar-lhe sua opinião, limita-se a
balançar a cabeça, aquiescer com vigor, franzir a testa de novo, nesse seu
jeito típico, mas agora na tentativa de simular uma compreensão profunda do
assunto que aflige a todo mundo.
Verdade
é que não sabe que problema é esse, essa terceirização. Verdade é que não
acompanha os noticiários, não lê jornal, não tem tempo, não se importa. Nunca
admitiu. É uma hipócrita dos tempos modernos. Mas tem tanta preguiça de existir
para além de si própria... Falta-lhe tempo para ser algo mais que pressa de
barata tonta.
Nessa
alienação toda pós-moderna, vai vivendo em segredo sua estupidez modificada,
maquiada por este grave meneio de cabeça, adotado há muito tempo, para todos os
contextos em que simplesmente não sabe, não sabe, não sabe. Desconhece o que
fazer, como fazer, quando fazer... Só adivinha o movimento: concorde, concorde.
Nada melhor do que aceitar para entender. Quando foi que desenvolveu o meneio
ponderado e grave, salvaguarda multifuncional, isso também já lhe escapou.
Arruma
papéis, transita entre telas, entre superfícies, toma café, executa mandados,
distribui poucas ordens, recebe muitas, tenta se ater, ater-se à realidade. Em
dados momentos, divaga, delira, mas devaneios tão discretos, tão discretos, de
gente muito ocupada, de gente que não se permite, gente que tem pressa. De
alguma coisa, de não se sabe bem o quê.
Fim
do expediente, ônibus lotado, impossível não prever. Previsão corretíssima,
aceita-se, resigna-se. Vai esperar de novo pelo terceiro ônibus que passe. As
paradas enchem-se, esvaziam-se. O fluxo é constante. Fim do expediente para
todos. O calor sufocante que veio depois da chuva torrencial, neste clima
neurótico e bipolar de fins de abril, agora amaina também, vai se tornando
molezinho e a noite vem caindo. Sopram brisas frias. Esperar pelo ônibus já não
parece tão terrível. Há quase tempo e espaço para se respirar.
Então
vem o ônibus, e com ele o cansaço definitivo. Nossa heroína sobe, senta. Não
passa a catraca, não há lugar vago na frente. Recosta a cabeça à janela, num
dos assentos traseiros. A volta para casa é sempre mais leve, porém mais
difícil, quando se desacelera. Quando se desacelera, vêm todo tipo de
pensamento informe... O semblante é como um pequeno mistério. E o coração da
nossa protagonista é mesmo secreto, muito secreto. Não se lhe pode adivinhar o
que vai dentro. Porém, se um algo não se estampa na cara, não há mesmo nada que
exista para além do óbvio. E o óbvio, é bradado pelo semblante impassível: não
sente nada. Se sente, já não importa.
Tinha
uns amores que não deram certo. Vai recosendo um passado que não vingou. Apalpa
o coração, exame do toque, tenta suturar velhas mágoas, coisas pequenas, coisas
que todo mundo tem, miudezas em geral, obscuras. A volta para casa é
infinita...
Alguém
lá na frente comenta, já mais esvaziado o ônibus, sobre a tal terceirização.
Não encontra eco. A noite é lenta. Sem a pressa, sobra tão pouco. A
protagonista passa, travessia, catraca. Desce. Cruza a rua, se aproxima do
portão de casa. As mesmas dores, as mesmas mágoas já meio desbotadas, afoiteza
alguma, só o silêncio. No rosto não se desnuda nada. Tinha um pensamento...
Agora lhe escapou.
E
enquanto segue toda cheia de vazios e pressas solenes que acordarão outra vez
amanhã de manhã, toda cheia de problemas, toda cheia de preocupação com a
provável chuva que virá, toda cheia de raiva contra o guarda-chuva que lhe
armou ciladas hoje cedo, toda cheia de incompreensão, a terceirização, a
dívida, os juros, os impostos, passa impassível por umas crianças que moram ali
na rua, defecam na calçada, não têm casa, não têm pressa, existem. Uma delas,
há poucos segundos, é provável, ainda quente, deixou de lembrança o dejeto
interior a um passo do portão da heroína, que olha agora para a coisa com
alguma resignação, qualquer paralisia bem mais forte que o nojo.
Suspira, apanha o molho
de chaves, abre o portão, mas não pensa, não vê fezes, não vê crianças, não vê
calçada. Balança a cabeça em concordância a uma afirmação muda, invisível, não
presta atenção, franze a testa por franzir, segue caminho. Mais palpável que
tudo isso é até mesmo a angústia de não entender nada sobre a terceirização.
Nenhum comentário:
Postar um comentário