Extinção
de universidades federais?
O Projeto de Lei
4330, sob o pretexto de regulamentar, escancara o processo de terceirização,
permitindo contratação de empresas e, portanto, de funcionários terceirizados,
não só nas atividades meio, mas na atividade fim das organizações. Isso
significa que uma empresa de autopeças pode contratar empresas terceirizadas
para executar tanto atividades de segurança e limpeza (atividades meio) quanto
para a produção das peças (atividade fim). Abre-se o curioso precedente de uma
empresa ser simplesmente uma organização que contrata diversas empresas para
fazer aquilo que ela, em tese, se propõe a fazer. A empresa contratante, assim,
pode existir sem ter funcionários ou mesmo estrutura física.
Mesmo com pouca
divulgação na grande mídia sobre o tema, parte significativa da sociedade
mobilizou-se contra o PL das terceirizações. Gente atenta nas redes sociais à
tramitação do projeto e, principalmente, sindicatos e outras associações em
manifestações de rua, na luta contra a retirada de direitos sociais. A luta
surtiu efeito e o serviço público foi retirado do PL 4330, não sendo este,
portanto, mais afetado pela terceirização. Curiosamente, na mesma semana em que
houve o ápice dessa luta e a conquista da remoção do serviço público do projeto,
o Supremo Tribunal Federal (STF) resgatou e votou a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN) 1923/98, que se posicionava contrária ao
estabelecimento de Organizações Sociais (OS), conforme preconizado pela Lei
9637/98. A ADIN ajuizada desde 1998, portanto há 17 anos, foi desengavetada e
os ministros do STF posicionaram-se pela validade parcial da ADIN. A partir do
posicionamento dos ministros, caiu a última barreira legal para a contratação
de OS para prestar serviços públicos.
O processo de
desmonte da máquina estatal de atendimento à população, que se organiza a
partir da contrarreforma de Estado, proposta por Bresser Pereira, durante o
governo de Fernando Henrique Cardoso, avança no seu marco legal e político
durante o governo de Dilma Rousseff. A ADIN analisada pelo STF era oriunda das
lutas sindicais no âmbito jurídico, assim como são também vários
questionamentos direcionados ao Tribunal de Contas da União quanto ao custo e a
qualidade dos serviços prestados pelas OS. O posicionamento do STF põe fim à
possibilidade de questionar a constitucionalidade da realização de contratos de
terceirização de atividades em várias esferas do serviço público, incluindo saúde
e educação.
O discurso
governamental apresentado à população desde a proposta de Bresser é a de que a
utilização de OS na esfera pública se prestaria a melhorar a qualidade e desonerar
os custos, em suma melhorar a eficácia e eficiência dos serviços públicos. O
que não se diz, embora possa ser facilmente encontrado em documentos oficiais como no caderno oficial intitulado “Organizações
Sociais” (Secretaria da Reforma do Estado. Brasília: Ministério da
Administração e Reforma do Estado, 1997, Cadernos MARE da reforma do Estado, v.
2, p. 18) é que “o propósito central do ‘Projeto Organizações Sociais’ é
proporcionar um marco institucional de transição de atividades estatais para o
terceiro setor”.
Dentro do
projeto Organizações Sociais, um termo é significativamente relevante: publicização.
Segundo o caderno já citado, “Um outro
processo que se insere no quadro mencionado acima é o movimento em direção ao
setor público não-estatal, no sentido de responsabilizar-se pela execução de
serviços que não envolvem o exercício do poder de Estado, mas devem ser
subsidiados pelo Estado, como é o caso dos serviços de educação, saúde, cultura
e pesquisa científica. Chamaremos a esse processo de publicização. Por meio de
um programa de publicização, transfere-se para o setor público não-estatal, o
denominado terceiro setor, a produção dos serviços competitivos ou
não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado
e sociedade para seu financiamento e controle”.
Esse
projeto de contrarreforma do Estado, proposto por Bresser Pereira e executado
por todos os presidentes desde sua proposição, visa retirar o Estado do papel
de executor ou prestador de serviços como saúde, educação, cultura e pesquisa.
Resumindo, privatização do serviço público! A privatização foi buscada
diretamente por meio da entrega à iniciativa privada das empresas estatais que
geravam somas vultosas de recursos, como é o caso de EMBRATEL e Vale do Rio
Doce. Onde isso não foi possível de forma direta, Bresser propôs a publicização
como mecanismo de acabar com a oferta de serviços públicos pelo Estado,
privatizando de forma indireta. Nesse caso, os órgãos públicos, por meio de
publicização, são extintos e suas atribuições colocadas sob controle da OS, permitindo
ao Estado não ter mais responsabilidade direta pela prestação do serviço. Na
proposta de Bresser, entidades estatais como universidades federais e órgãos de
pesquisa como a EMBRAPA serão extintos (Não, não é engano! Serão extintos!),
inventariados e suas atividades incorporadas por uma OS por meio de contratos
de gestão entre a organização e o Estado. Esse mecanismo de extinção de
universidades, hospitais e órgãos de pesquisa com transferência de suas
atividades para uma empresa do terceiro setor, a gente discute no próximo texto.
Extinção de
universidades federais? – Parte 2
Em “Extinção das
universidades federais?” começamos a entender a relação entre o PL 4330 que
trata da terceirização, a ADIN 1923 que trata das Organizações Sociais e o processo de extinção de universidades, hospitais e
órgãos de pesquisa com transferência de suas atividades para uma empresa do
terceiro setor através da publicização.
O “propósito central do Projeto Organizações
Sociais é proporcionar um marco institucional de transição de atividades
estatais para o terceiro setor e, com isso, contribuir para o aprimoramento da
gestão pública estatal e não-estatal”. O propósito é bonito, entretanto,
começamos a vislumbrar no texto anterior como esse discurso da contrarreforma
do Estado, proposta por Bresser Pereira no governo Fernando Henrique Cardoso e
que se estende até hoje, escamoteia um processo de extinção de órgãos públicos
como universidades, hospitais e órgãos de
pesquisa com a subsequente transferência de suas atividades para uma empresa do
terceiro setor.
Vimos
como o PL 4330 que tramita no congresso federal e a posição do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 1923/98 que
trata do estabelecimento de Organizações Sociais (OS), conforme preconizado
pela Lei 9637/98, são faces desse desmonte do Estado. E como, sob o eufêmico
termo publicização, a contrarreforma, hoje capitaneada por Dilma Rousseff, visa retirar o Estado do papel de executor ou
prestador de serviços como saúde, educação, cultura e pesquisa. Para
compreender esses preceitos, vamos destacar trechos do caderno oficial
intitulado “Organizações Sociais” (Secretaria da Reforma do Estado. Brasília:
Ministério da Administração e Reforma do Estado, 1997, Cadernos MARE da reforma
do estado, v. 2, p. 18), que aparecem ao longo deste texto entre aspas, bem
como suas implicações.
A
proposta de Organizações Sociais (OS) assume a publicização como estratégia de reforma
do Estado (denominada aqui de contrarreforma por retirar direitos dos
cidadãos). Com a publicização, o Estado transfere para a OS suas atribuições,
bem como recursos, bens e equipamentos, desobrigando-se de prestar o serviço e
passando a ser, simplesmente, um órgão de controle. As entidades
(universidades, museus, institutos de pesquisa...) cujas funções vierem a ser
absorvidas por alguma OS, deverão, em sua maioria ser extintas. A OS ao
absorver as atividades de uma entidade, adotarão a denominação e o símbolo da entidade
extinta. Como entidades de direito privado, “Do
ponto de vista da gestão de recursos, as Organizações Sociais não estão
sujeitas às normas que regulam a gestão de recursos humanos, orçamento e
finanças, compras e contratos na Administração Pública”. Fica aqui uma
pergunta, se os recursos do Estado, inclusive com dotação no Orçamento Geral da
União, serão destinados as OS, e estas poderão usá-los com a liberdade inerente
à iniciativa privada, por que as entidades que serão absorvidas não podem ter
um regime de funcionamento que facilite sua gestão financeira?
É interessante
notar que não se trata da conversão de uma entidade estatal em uma OS, é a
extinção do órgão do Estado e a criação de uma organização social que passa a
assumir as funções da primeira. Isso fica claro no caderno Organizações Sociais
ao tratar do processo de publicização. Segundo o texto: “A implementação de Organizações Sociais implica duas ações complementares:
a publicização de determinadas atividades executadas por entidades estatais
(que serão extintas); e a absorção dessas atividades por entidades privadas
qualificadas como OS, mediante contrato de gestão. Portanto, é imprópria a ideia
segundo a qual organizações estatais seriam convertidas ou transformadas em OS.
Atividades (não exclusivas de Estado), não entidades, são publicizadas.
Entidades estatais são extintas após a publicização de suas atividades; não
convertidas em OS”.
Então, as OS surgidas
após o processo de publicização, embora mantenham os nomes das entidades das
quais assumiram as atividades, são outras instituições completamente
diferentes. Isso deixa claro que as instituições como universidades federais e
entidades de pesquisa passarão a existir e ser regidas sob outra lógica. O nome
Universidade Federal do Amapá, por exemplo, continuará existindo, mas será outra
instituição, agora uma OS e não um órgão federal e, portanto, não será mais
regida pelo Estado. Este se desobriga dessa atividade e passa a controlar a
instituição por meio de contratos de gestão que deverão ser executados pela ‘OS
Universidade Federal do Amapá’.
A figura
“Processo de publicização” deixa claro que será efetivada a “extinção da
entidade estatal”, cujos recursos serão inventariados e, quando da assinatura
do contrato entre o Estado e a OS, esta receberá daquele recurso, cessão de
pessoal, permissão para uso de patrimônio e sub-rogação de contratos. Entidades
como as universidades federais, por exemplo, deixarão de existir sob a forma
pela qual tradicionalmente as conhecemos. Embora o discurso do caderno OS
negue, os contratos de gestão caminharão para a obtenção de lucro, portanto, é
uma privatização das universidades. Focadas no lucro, encerra-se toda a ideia
do ensino nestas instituições como um direito social e a educação brasileira
caracteriza-se de vez em sua face mercantilista. Mesmo que o passo inicial como
tem sido efetivado em algumas instituições como a Empresa Brasileira de
Serviços Hospitalares (EBSERH) não tenha se caracterizado pela imediata
extinção dos entes públicos cujas atividades ela tem assumido, nada garante que
os movimentos seguintes caminhem para a lógica prevista na contrarreforma de
Estado apresentada por Bresser Pereira.
Militantes sociais
e sindicais, principalmente de movimentos estudantis combativos e de sindicatos
de docentes e servidores técnico-administrativos lutaram arduamente (as greves
são parte relevante desse combate) e conseguiram impedir o processo de
privatização da universidade brasileira até agora. O horizonte próximo que se
vislumbra é o de extinção de órgãos públicos. Extinção de entidades de
pesquisa, extinção de museus, extinção de universidades federais. E você, como
se posicionará em relação à extinção desses órgãos e da universidade que você
estudou, estuda ou pretende estudar? Agora é o momento de posicionamentos! É o
momento de lutar! Participe!
Legenda
da figura (disponível na página seguinte):
Processo
de publicização. Fonte: “Organizações Sociais”
(Secretaria da Reforma do Estado. Brasília: Ministério da Administração e
Reforma do Estado, 1997, Cadernos MARE da reforma do estado, v. 2, p. 18).
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