quinta-feira, 21 de maio de 2015

ANTENADOS




Não se pode de todo esquecer

O mal conta com o esquecimento. Com o fraquejar das pestanas. Das tragédias, do crime, do risco, não esquecer, não esquecer enquanto houver o que lembrar.

Não chamava muito a atenção, dentre toneladas de notinhas triviais sobre celebridades em um site de notícias e variedades, o seguinte título de matéria: "Caso Bernardo tem nova pista". Sei, de algum modo, sinto que sei quem é Bernardo. Mas de repente percebo que a história já se apaga da mente. Não que tenha terminado. Há ainda história. Clico no link que me leva até a explicação do caso, relembro-o.

O menino Bernardo, Bernardo Boldrini, fora assassinado no ano passado, abril de 2014. Lembro que, à época, eu havia acompanhado o que se dizia na mídia sobre o crime, e me entristecido, e me chocado. As suspeitas recaíam quase todas sobre a madrasta e o pai do menino, em uma cidade pequena do Rio Grande do Sul, em meio a muitos segredos e mais parentes e amigos envolvidos indiretamente no ato terrível.
Desde abril do ano passado, quando Bernardo foi encontrado morto , após ser dado como desaparecido, muita coisa aconteceu. A mãe morreu também. Aparentemente, suicidou-se. Depois descobriu-se que a carta de suicídio fora forjada. Em meio a tudo isso, versões variadas do que teria de fato acontecido com o menino e também com a mãe. E vieram audiências. Datas adiadas, o julgamento. Pedidos do pai para que respeitassem a dor da família, ele também suspeito do crime. Solicitara que o caso fosse conduzido em segredo de justiça. E mais detalhes surgiam, e menos resoluções, e cada vez mais o interesse do público se acabando. Eu mesma parara de acompanhar tudo há muito tempo.

Na verdade, nunca se tratou de interesse, não deveria. É nocivo isto também. Porque às vezes, de modo odioso, vampirizamos as tragédias alheias. Adentramos, devassamos a dor do outro com nossa curiosidade, fazemos do horror ao lado um espetáculo demasiadamente satisfatório, porque não acontece conosco. Isso é também um mal, é deixar de perceber a dor enquanto dor.

E para os dois lados desses extremos podemos ficar anestesiados: tanto na desesperada voracidade por detalhes sanguinolentos quanto na desumana apatia pela agonia do outro.  Foi um professor meu que me disse, certa vez, palavras sábias que me ajudaram a entender por que é que todos nós sofríamos – ou deveríamos lamentar e sofrer junto – com aquela outra tragédia que acontecia tão longe, aquela do incêndio da boate Kiss, também em cidade do Rio Grande do Sul, no ano de 2013.

O que me disse foi algo como "quando uma pessoa morre, eu também morro, a humanidade toda perde, morre", parafraseio. A percepção disso me tocou, é claro. Ainda toca. É preciso, obviamente, seguir em frente a cada dia, respirar, tocar a vida. Caso contrário, estaríamos paralisados pelo caos terrível das tragédias. Mas é preciso também sentir na pele o que representa uma tragédia, a tragédia dos outros, a morte, a perda.

Para aprendermos quando chegar a nossa vez de perder, que seja. Para aprender qualquer coisa. Ou não aprender coisa alguma, mas ainda assim impedir que a percepção humana, o que nos move, o que nos faz ansiar por coisas grandes e melhores, impedir que ela congele. Nada está tão longe de nós assim, tão distante de nos atingir, que não possa ser sentido agora, para já, nem mesmo o holocausto armênio.

Volto então a pensar no menino Boldrini, que se foi. Não acompanho o caso como quem acompanha uma novela. De fato, talvez não volte a ele, com curiosidade de detetive, nem mesmo enquanto escrevo este texto. Mas penso, sim. Penso agora e nos próximos dias nessa história, nas dores todas que se encerram nela. Porque é urgente não esquecer.


Não esquecer jamais a noção da perda. Para que as coisas não se tornem menores do que realmente são. Para que se agigante um medo do mal que ao mesmo tempo o combata, o cace dia após dia, em cada atitude, e a gente se proponha a viver como quem sabe o poder devastador que o mal tem, e por isso mesmo começa por domá-lo em si próprio.

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