ENTRE COSTUME E RUÍNA
Bárbara de Azevedo Costa
Andar por Macapá hoje é encontrar um matagal a cada esquina. A cidade mais parece um grande lote de terreno baldio.
Vias e estradas, condições de locomoção e moradia, tudo se encontra em situação mais que precária, beirando mesmo o desumano.
É muito mais difícil sequer tentar começar a resolver problemas profundos de uma sociedade, quando ela não conta nem mesmo com a garantia de princípios tão elementares, como saneamento básico, para que o povo exista com um mínimo de decência.
Vivemos o segundo milênio de um mundo moderno e há ainda gente habitando em casas feitas de ripas de madeira em pontes podres, capengas, erguidas sobre valas e esgotos a céu aberto. Não há espaço para alocar o povo, em condições mais sadias, de maneira menos amontoada e desorganizada? Em que momento a cultura da palafita, parte da identidade popular, deixa de ser um meio legítimo de habitação para se tornar o retrato do descaso social, do desleixo urbanístico, da incivilidade, da falta de zelo com o humano?
O matagal, a lama, os buracos revelam um descuido político, testemunham uma crise gestora que se acumula há anos e anos, não vem de hoje. Uma omissão testamentária, passada junto com o cetro, de gestão a gestão. Mas não seria ir longe assumir também que exista uma espécie de comodismo obstinado por parte dos próprios habitantes do lugar, nós mesmos.
O desprezo com que nos evitam os olhares dos que deveriam zelar por nós, garantir o que nos é de direito (condições básicas de subsistência, no mínimo) encontra eco no próprio modo desmazelado com que nos acomodados ao que está posto e, sossegados em nossas redes, enquanto a cidade e o Estado implodem, não cobramos nada com veemência, não fazemos, não alteramos. Muitas vezes nem enxergamos mais o mato que ameaça invadir nossas casas, o lixo que se acumula na frente dos muros.
Diz-se que o Brasil está em crise. Quase atingimos momentos de histeria coletiva diante de uma economia em recessão, de medidas autoritárias, de juros altíssimos, de preços que só sobem e sobem. E a corrupção. A chaga que não sara. Dentre autoridades e povo, só culpados, todos nós. A cada um cabe uma parcela de inoperância.
Igualmente triste é perceber que, enquanto o Brasil vive o que se considera um momento caótico, é coisa cíclica e que, portanto, encontrará solução em breve, no próprio ritmo regido pelo capitalismo, enquanto que o Amapá parece que vice desde sua invenção num estado de crise perpétuo, variando entre estagnação provinciana e involução: em nossa história, limitamo-nos a ir de um clima de total paralisia a um arrasador declínio em relação ao pouco que se tinha.
Ao mesmo tempo, exigiremos de nosso Amapá que se transforme em pequena Suíça, em caricata Dinamarca? Muito difícil. Necessitamos, é verdade, pensar modos de desatolar nossas convenções políticas e econômicas de práticas escamoteadoras, omissas, desalojando-nos dos velhos modos com que sempre permitimos que a cidade crescesse sem qualquer organização sanitária, social, arquitetônica, mas precisamos entender ainda que vislumbrar para uma pequenina Macapá os ares de uma grande São Paulo, por exemplo, é impraticável, até mesmo indesejável. Indigesta confirmação de uma hierarquia esnobe.
Quando pensamos na necessidade de mudar os padrões de vida em que já nos bitolamos, e que nos prejudicam, devemos fazê-lo sem ferir e trair quem somos como nos construímos. Não se reeduca um povo de modo a trocar um modelo de comportamento por outro potencialmente estrangulador. As sociedades se erguem em sutilezas que não se alteram nem mesmo com grandes empreitadas.
Contudo, urge que repensemos, reflitamos sobre o modo de vida acomodado que levamos, de estreita visão, sabotando a nós mesmos, deixando que tudo se faça, mesmo a nos matar. É preciso que aprendamos a realmente nos importar com o tipo de gente que fomos até aqui, de que modo isso nos prejudica, se prejudica, e o que podemos adaptar em nossas condutas pessoais e na administração de nossas instituições, sem perder o senso de pertencimento e de identidade que nos garante aquela sensação de plenitude quando entendemos a nossa existência entre pessoas e costumes que soam em nossa cabeça e no coração como sendo nossos inalienáveis.
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